Quatro poemas de Mírian Freitas
Mírian Freitas é mineira, doutora em literatura comparada, é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JFora. Sua paixão pelas letras surgiu desde a infância e na adolescência costumava passar noites em claro datilografando seus textos em uma Olivetti portátil, que foi um presente de seu pai. Considera que suas viagens para os mais diversos lugares sejam sempre autoconhecimento. Publicou Intimidade vasculhada (2005), Exílios memórias e outras passagens (2016), Quase (2017), Caio F. Abreu uma poética da alteridade e da identidade (2021), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (2021), Mosaico (2022), A memória é uma oficina de ossos (2023).
***
BOSTON
French toast e pasta de amendoim
nos dentes.
Entre o tempo do inverno e da neve
há a vaga lembrança
de um dia em pedaços
numa primavera distante.
Um dia esvaziado pelas ruas de asfalto cinza
e paredes de tijolos
antigas
em contraste com o colorido tom das tulipas
a exalar ao vento
o gosto de um perfume instintivo
como os açúcares mais delicados
das flores
a transbordar a presença materializada
na paisagem estendida sobre a cauda vaidosa
do rio Charles
e a vontade de ler um poema de T.S. Eliot.
*
SAINT- REMY-DE-PROVENCE
(França)
Pássaros sobre a janela
piavam amarelos e chuvosos
no entardecer de sombras e varandas nostálgicas.
Piavam enfeitiçados pelos matizes
lilás e púrpura
que o céu rabiscou
sob as vértices da arte e da loucura
de Van Gogh.
*
O HOMEM, O PILÃO E A MEMÓRIA
(para Gonçalinho)
O pilão esculpido
na carne da madeira
ficou de cócoras
na varanda
da casa.
Um braço, duas mãos
socam o urucum
no fubá
nas vestes
de um nome
igual ao dos peixes
do lajeado.
Os olhos riscados
lampejam na alma secreta
de um vaga-lume.
Nenhum sopro alcança
as artérias dos dois filhos
na outra margem
do pasto.
A paisagem dos bois exaustos
cobre o homem
de premonições.
Detrás das fraturas nas mãos
e das rachaduras nos pés,
rumina a desesperança.
Os ossos da avenca
falam na mudez
dos sentidos:
− O exílio é destino dos mortos.
Todo homem é uma embarcação.
*
TRAVESSIA
(para Thamires Figueiredo)
Alguns, achando bárbaro o espetáculo preferiram (os delicados) morrer. (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
Qual é mesmo o caminho
por onde desço as escadas para ver
a floresta de luzes?
O olhar de mármore polido
que um dia pousou pela janela da avó
medita agora no bosque solar.
Basta a melancolia da vida
para sacudir as frágeis arestas do tempo.
Não fomos feitos tão duros e fortes como o metal.
Podemos, talvez, com nossa força submissa,
em nossos dias de incêndios e de máscaras pregadas à cara,
sermos um pedaço de pedra,
sermos até mesmo robustos como um toco de madeira
perfeitos como uma linha reta no horizonte.
Mas não é todo dia que conseguimos erguer uma pirâmide
de ouro.
As coisas escuras podem falar mais alto
que a leveza da luz?
O degrau pode falhar?
Enquanto os relógios esmiúçam as migalhas
da vida,
as mãos apagam os gestos
em um movimento de aves mortas.
Se tudo tivesse sido diferente
como num sonho de águia,
as nêsperas maduras estariam
em sua boca,
as abelhas te entregariam litros
e mais litros de mel,
os cafezais do Rochedo seriam
o seu esplêndido universo.
Agora, entre seu coração e a terra,
erguem-se os dedos entrelaçados
no verso infinito da memória,
eu sei.
Ó, alma, receba em seu ventre
estes magníficos frutos de amor
estes jardins luminosos de orações.
Cicero Bizzuka
Tbm sou poeta e apaixonado por esta página. Poemas lindos