Quatro poemas de Ranieri Carli
Ranieri Carli, 42 anos, professor e crítico de literatura, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta, autor de Toda Estupidez, de 2019. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve. Pretende com poesia sugerir algumas reflexões sobre os problemas que experimentamos nos dias atuais.
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Guerra contra o Ocidente
Quanto ao herege, o jornal nos informa:
Queimado vivo na porta do templo
Para que sirva de máximo exemplo
Do fim que é dado ao desvio de norma.
Chegam notícias que narram sem pausa
A morte vil de civis numa viela;
Um homem-bomba que, então, se cancela
Severamente a favor de uma causa.
E o irmão menor do suicida, animado,
Num lance de olhos acima dos ombros,
Nada vislumbra senão os escombros
Que enterram vítimas desse atentado.
Congoleses deixam Brasil fugindo da crise e morrem no mar na Colômbia
A viagem que dura meses
De galera desde o Congo.
Um longo percurso, longo
O inferno dos congoleses.
Fogem desse Congo hostil,
Da fome, que os afugenta
Também daqui, da tormenta
Que os acompanha ao Brasil.
Acre, Peru, Panamá…
No rumo que o norte aponte,
Pondo sempre no horizonte
O sonho de um Canadá.
Por sete mil e oitocentos,
São levados por coiotes
Compressos dentro dos botes,
De onde se ouvem seus lamentos.
Na Colômbia, a tevê exibe
Que tomba uma das canoas
Com trinta e duas pessoas
Mortas no mar do Caribe.
Dos corpos, são dezessete
Descobertos: nove adultos
E oito miúdos insepultos,
Todos eles sem colete.
Mas não computaram entre
As crianças mortas, dois fetos
Que viajavam ali, quietos,
Dentro das mães, em seu ventre.
O burocrata I
Comendo um pão com purê de batata,
Como convém a um veraz burocrata.
Pondo a ração na vasilha da gata,
Como convém a um veraz burocrata.
Vestindo um terno de linho e gravata,
Como convém a um veraz burocrata.
Saudando desde o porteiro ao magnata,
Como convém a um veraz burocrata.
Mostrando as salas à turma novata,
Como convém a um veraz burocrata.
Fixando os muitos registros em ata,
Como convém a um veraz burocrata.
Dispondo ofícios por ordem de data,
Como convém a um veraz burocrata.
Lendo o estatuto que sempre se acata,
Como convém a um veraz burocrata.
Fazendo do hábito a máscara inata,
Como convém a um veraz burocrata.
Sendo um vagão que nos outros engata,
Como convém a um veraz burocrata.
Portando o espírito da álgebra exata,
Como convém a um veraz burocrata.
Abrindo mão de aderir à passeata,
Como convém a um veraz burocrata.
Fingindo ser eleitor democrata,
Como convém a um veraz burocrata.
Fechando os olhos à má negociata,
Como convém a um veraz burocrata.
Servindo dócil a quem o contrata,
Como convém a um veraz burocrata.
Cedendo quando lhe pedem a pata,
Como convém a um veraz burocrata.
Sofrendo o assédio que não se relata,
Como convém a um veraz burocrata.
Temendo a Deus, senhor do ouro e da prata,
Como convém a um veraz burocrata.
Deixando à sombra o seu viés psicopata,
Como convém a um veraz burocrata.
Contendo impulsos de origem primata,
Como convém a um veraz burocrata.
Domando a vida, tão pérfida e ingrata,
Como convém a um veraz burocrata.
Vivendo a inércia, que aos poucos o mata,
Como convém a um veraz burocrata.
Violeta Parra
Vem-lhe à garganta um amargo de bile
Enquanto o canto do povo do Chile
Está vibrando no lábio que o narra.
Ânsia que não se controla jamais,
Que rompe forte das cordas vocais
Calando até a estridente cigarra.
Grita bem alto que a América escute,
A mesma América em que pisa o mamute
Do usurpador que lhe arranca a guitarra.
Quem se tolera em salões, em cafés,
Cujos tapetes não valem os pés
Dessa garota que agarram na marra?
Por isso, clama o paupérrimo poeta,
Que evoca o nome latino: Violeta,
Membro invulgar da família dos Parra.
Carta a um imigrante sírio
Esta é sua nova morada
Depois de um ano de fuga
A passos de tartaruga
Por terra e mar, camarada.
Sinta-se num lar, venha e entre,
Beba dos vinhos mais suaves.
Farei a cópia das chaves
Deste seu cômodo-ventre.
Deixo tudo à sua mercê
Para que esqueça todo asco
Que a tragédia de Damasco
Ainda produz em você.
Sei da graúda cicatriz
Que o envergonha desde a perna,
Graças à guerra que inverna
Em seu belíssimo país.
Reclama que a dor é tanta
Pois não veio a primavera
Do modo como se espera
Quando um povo se levanta.
Vem-lhe um lamento espontâneo
Se lembra o bote que chega
Sem filhos à terra grega
Pelo Mar Mediterrâneo.
Vou lhe dar afetos, banho
E um prato de arroz com peixe:
Penso que, assim, você deixe
De ser um distante estranho.