Quatro poemas de Rita Isadora Pessoa
Rita Isadora Pessoa (1984-) é uma escritora nascida no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro de poesia, a vida nos vulcões, foi lançado em 2016, pela Editora Oito e Meio. Seu segundo livro, Mulher sob a influência de um algoritmo, venceu a terceira edição do Prêmio Cepe Nacional de Literatura e foi publicado em novembro de 2018 pela Editora Cepe.
Os poemas abaixo são inéditos e fazem parte do terceiro volume da autora, ainda no prelo, madame leviatã.
***
das ruínas preliminares
ou
dos papéis individuais no fim do mundo
aquela sou eu esperando a catástrofe
com as mãos seraficamente pousadas
sobre o colo
a verdade é que só preciso
me agarrar violentamente
a um ponto fixo
na disco-voragem
deste sonho
e permanecer submersa
acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa
descendo pelas minhas pernas
e devolvo delicadas ossadas
sob o signo da carnificina moderada
(uma forma de canibalismo contemporâneo?)
expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos
equilibrados sobre a porcelana
frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que
o meu corpo
ele não se quebra
não quebra como se quebra um prato
ou um fêmur
não como se quebra uma linha
no fim de uma frase longa e deselegante
alinhada à esquerda
o que tenho a ser feito
pode até ser chamado de ofício
de linha e agulha
mas eu contenho hemorragias
é o que eu faço
— deveria ter sido médica
mas me coube ser dique
: eu contenho hemorragias
com as mãos
todos os dias
— um ofício que empresto
da pedra
para subjugar o rio
*
eu, olga hepnarová
é verão em praga
e o ano é 1973.
[você,
olga misantropová, com seu figurino de caminhoneira nouvelle vague, suas calças de veludo cotelê e a jaqueta de couro craquelada, você, anna karina psicopata, ainda que visionária, você ignora o óbvio
: o avesso do amor não é o ódio]
é verão em praga
mas faz ainda muito frio
e o avesso do amor é o coração terminando de bater de encontro ao asfalto, fraturas expostas, intestinos a migrar da cavidade abdominal como uma corda autônoma que sabe exatamente o destino que lhe é devido: o pescoço que espera a quebra
de parágrafo,
o cadafalso que espera
a quebra do pescoço
com a corda na mão.
[corta para] o caminhão de olga estacionado na calçada;
a fileira corpos estendidos como uma oferenda satânica, mas você não é satânica, olga, você é uma assassina em massa e isso é diferente. satânico é outra coisa. planejar um assassinato simples requer um engodo fundamental, um paralaxe e você
escolheu ignorar que o avesso do amor
não é o ódio.
é verão em praga
e faz frio;
o avesso do amor
se faz por meio de grandes colapsos,
colisões no concreto, no asfalto,
um embotamento brutalizado,
e você, olga hepnarová,
espera seraficamente
a polícia;
a bolsa no colo,
sentada em seu caminhão
você, a autora dessa carta perturbadora
para as gerações que virão:
“eu, olga hepnarová,
vítima de sua bestialidade,
condeno-os todos à morte.”
*
diário do ano do macaco de fogo
se como celan
eu tivesse a certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
[uma mulher inteira
garganta glote ancas
sexo tornozelos]
apenas em torno
de uma palavra infeccionada
se eu não tivesse
as mãos gretadas
como uma figura mitológica
mal-sucedida
em suas peripécias amorosas
eu poderia sim acreditar
[como se a minha vida
dependesse disso de fato]
no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
e se repete
e se repete
nesse projeto desconjuntado
de revolução
mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico — o símio
que mimetiza o desfecho ígneo
e não
eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro
não tenho habilidade
para os grandes gestos incendiários
estou aguardando
p a c i e n t e m e n t e
a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante
da perspectiva brutal
do nascimento
de um grito
*
como batizar um ciclone atlântico
para priscilla menezes
você me assegura que
a tarefa de manufaturar a tempestade
deve ser como
a atmosferização do poema
como descolar uma palavra da outra
: seccionar a polpa
da casca
ou como subordinar a sua paisagem
à escansão algorítmica do vento
mas o silêncio dos astros segue
numa linguagem temporária
[ como nomear a passagem de um a outro? ]
uma tempestade do tamanho do estado de ohio
você garante: o ciclone toca o solo
como um ponto de voragem
toca o mapa geológico de alguma página escrita em tempo real acredite
você diz
[qual é mesmo o nome do ponto?]
85% dos furacões se formam a partir dos ventos africanos
você desliga a tevê e promete jamais assistir telejornais novamente
alimenta os peixes
sugere distraidamente
um cronótopo de deserto um nome
uma mulher
prateada como um arenque finlandês
montada num cavalo
em seu epicentro
— a imagem que te vem
é de um leviatã composto de destroços e vento
que se move
de um ponto a outro
[ dar nome a um ciclone é ser
também nomeada por ele, você conclui ]
você segura com dificuldade
uma lanterna entre os dentes
fixa o olhar sobre horizontes imóveis
para desacelerar a vertigem
como sua mãe ensinou
você não tem certeza
sobre a intenção da tempestade
: um tropismo de ilha
que não sabe se é continente
ou oceano