Quatro poemas de Sirlene Ballier
Natural do Rio de Janeiro, Sirlene Ballier estudou Psicologia na UFRJ. Graduanda em Letras\Português Literaturas na UFF. Estudou música – Teoria Musical, flauta, canto, canto coral e percussão – na Escola de Música Villa-Lobos, Escola de Música Baden Powell e com professores particulares.
Contista e poeta publicada nas seguintes coletâneas: No Brasil, 2ª Coletânea Poética – Mulherio das Letras – Editora ABR\ 2018; 2ª Coletânea de Prosa – Mulherio das Letras – Editora Indicto\2018; 3ª Coletâneas de Poesias e Prosas – Mulherio das Letras – Editora ABR\2019. Em Portugal, Coletânea Toca a Escrever – Editora In-Finita\2022 – publicação em blog e em livro. Participa dos coletivos literários feministas Mulherio das Letras – criado pela escritora Maria Valéria Rezende – e de suas diversas vertentes: Mulherio das Letras Rio de Janeiro, Mulherio das Letras Portugal, Mulherio das Letras Indígena.
Livro de contos Caderno de Partituras (Music is my home) a ser publicado, no primeiro trimestre de 2024, pela editora Arribaçã.
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(Longos poemas para longuíssimos dias – 2018 a 2022)
I’ve waited for someone like you for so long – 2018\2019
Vejo seu rosto de beleza inumana na fotografia and I know it´s you.
Ao te ver na tela pensei: That’s my gipsy boy!! Você estava lá.
E eu não havia tocado sua face com as pontas dos meus dedos.
Pois você é a tela de Daniel Senise que me assombrava em sonhos: o objeto que
flutuava dentro da noite.
Prestei muita atenção em suas palavras, em um idioma desconhecido, sua voz angélica, suas mãos sobre o teclado do piano.
Presto atenção, assim, somente no canto dos passarinhos, próximo as minhas janelas.
Isolados nas telas e em uma terceira língua que não era as nossas, nós insistimos. As palavras foram desaparecendo – sonatas, noturnos, concertos, rock, pop, música tradicional da sua gente – nos bastavam.
Sempre.
I wrote for you my most beautiful song.
And I sent it to you in a bottle. Não, eu me atirei ao mar.
Eu era a garrafa e a mensagem.
Em estilhaços me acomodei dentro do vidro verde.
Mas você vive no continente, longe dos oceanos.
Até a sereia que nadava no seu coração, cantou para mim and I fell in love with you.
Entre a vigília e o sono, eu sentia seu corpo se achegar ao meu. O cheiro, a maciez da pele, o desejo.
O conforto de adormecer em seus braços.
Você me contou que estava pensando em mim no exato momento. Momento exato. Não, eles nunca entenderão que nós éramos amantes muito antes de nos tocarmos.
Eu conheço você como os pássaros conhecem suas rotas no infinito azul. Você me conhece como o bebê se aquieta no colo da mãe.
Por que nós nunca conseguimos cantar a mesma melodia?
Em algum ponto nós nos perdemos.
Fui arrastada pelos mares, algas emaranhadas no cabelo. Você vagava por um
território vazio, sem norte.
O medo é uma dor constante.
O ódio dói nas minhas entranhas.
Não posso lutar contra seu medo.
Eu queria apenas ser sua mulher. Tudo em mim queria ser sua e só tenho isso para te dar.
Você não é um herói.
Eu não anseio completar os doze trabalhos de Hércules.
Você me implora: Não me tire a paz que eu sinto agora. Eu sou a balada opus 23 nº 1 em sol menor, de Chopin. Não há acordes pacíficos aqui.
Os dias contigo foram quase sempre cheios de luz. Saudades imensas de ti.
Uma vida inteira e um pouco mais.
*
Arthur – 2020
* Inspirado pelo poema L’ Éternité de Arthur Rimbaud e pelo filme Total Eclipse.
Quando você escreveu o poema sobre
o mar desconhecido:
Em que águas você pensou?
O sal feriu teus olhos?
Você ouviu as ondas baterem, nas
pinturas, penduradas nas paredes?
O calor acariciou a tua pele?
Havia areia em teus sapatos?
Teu coração explodiu no peito?
Daqui da minha janela,
vejo um céu que nunca existiu
e um azul que não existe na paleta das cores.
A cidade cheia de fantasmas.
Nenhum motor de carro
empesteia as ruas.
E o céu nos devolve a cor
mais límpida e bela.
Mal ouço os vizinhos e os passantes
desapareceram.
Sinto que sou apenas eu, o infinito acima, o ar límpido,
E os vírus que se ocultam.
Ao mergulhar nas ondas, sal e espuma:
O que era mais intensamente o oceano? O que habitava o teu poema?
Ou onde você mergulhava?
O sol brilhava quente também no poema L’ Éternité?
A criança que você ainda era, quis catar conchinhas?
Você riu e gritou.
Paul viu atônito a alegria explodir
em teus olhos tristíssimos.
O mesmo céu que vejo agora
da minha janela.
Eu vi nas janelas, das telas,
os mares pululando de vida em
azuis e ondas.
E em Veneza era translúcida.
A vida que não mais existia nos canais
ressurgiu e ondulava em todos os recantos.
Ruas praças gôndolas vazias,
a nos lembrar que a natureza
não sofre com os vírus.
Sofre com os humanos invadindo
cada milímetro do espaço.
A eternidade líquida e efêmera
que você contemplou –
Estava no caminho do sol sobre o mar, no ocaso do dia?
Ou saiu do coração do poema?
Ou transbordou dos teus olhos tristes e
se espraiou pela superfície do oceano?
O caminho de luzes de muitas cores
transmutou meu olhar para sempre.
A eternidade fugidia que você vislumbrou, Arthur,
cobre agora as águas transparentes do planeta.
O tempo fugidio também parou aqui,
no firmamento azul, no silêncio, na
respiração funda e pausada.
Nas árvores altas que balançam
do outro lado da rua.
Entre as folhas, os raios prateados
são como finas fitas de seda,
brilham, brilham.
Eternas.
*
O dia da marmota ou o diário do pandemônio – 2020\2021\2022
Mulher que limpa o mundo com álcool gel. Moça que se recusa a usar máscara. Menina que chora a falta da escola. Homem que morre ao dar entrada no hospital. Rapaz de bicicleta que entrega produtos da farmácia. Despresidente que diz que tudo não passa de uma gripezinha. Políticos e assemelhados que se alinham com o despresidente. Enfermeira que não sabe mais quando seu turno de trabalho termina. Lojas e empresas fechadas. Escolas fechadas e pais abismados. Morte. Luto.
Dezenas de mortos.
Senhora que não tira a máscara nem para dormir; mulher morre no hospital após cinquenta e sete dias internada; rapaz que entrega as compras do supermercado; empregada doméstica demitida; empregada doméstica que mora no emprego e agora trabalha dez vezes mais; patroa que anda pela casa e suspira ao dar falta da secretária do lar; professores através das telas; político fora da realidade que nega a gravidade da situação; despresidente macho muito macho que briga com o povo, com os parlamentares, com os cientistas, com os médicos e com a realidade; morte; luto.
Centenas de mortos.
Homem que toma cloroquina; mulher entubada no hospital; velho morto pela covid-19; homem que nunca soube onde se guardavam as vassouras agora tem que limpar a própria casa; lives de teatro, música, balé, aulas pipocam na rede; rei louco continua lutando contra o povo e contra o auxílio emergencial; milhares de desempregados; pequeno empresário falindo; médico que não sabe mais como e quando vai sair de dentro do pesadelo; rapaz que continua frequentando lugares públicos porque sua “espiritualidade” o protege do vírus; alunos das escolas públicas abandonados à própria falta de sorte; morte; luto.
Milhares de mortos.
Mulher que não tem mais hora para terminar o trabalho do escritório em sua sala de estar, mãe que não sabe mais o que fazer com seus filhos em casa, idosa que pensa sempre ter vivido em isolamento social, mulher rica que resolve aprender online tai-chi-chuã – bordado romeno- meditação transpessoal – técnicas de cura quântica, a vida através das telas, as artes surgindo pelas telas, despresidente debilóide que pensa saber tudo, bilionários cada vez mais ricos, pobres cada vez mais miseráveis, alunos e professores em grande descompasso, pilantra travestido de político que sugere “ passar a boiada”.
Milhares e milhares de mortos.
Mãe que cozinha lava passa arruma desinfeta e depois cozinha lava passa arruma desinfeta e depois…, homem que fala contra a vacina e nada entende do assunto, coveiros que suspiram pensando “ Quando o inferno terá fim? ”, senhora desesperada querendo quebrar o celular mas se lembra que não poderia viver sem ele, políticos cafajestes que se aproveitam da situação para roubarem o dinheiro que deveria estar nos hospitais, o “ E daí?! Eu não sou coveiro” ri dos pacientes com falta de ar. Fake News sobre remédios, vacinas, situação da pandemia. Mortes incontáveis. Lutos intermináveis.
Mortos incontáveis, cemitérios insuficientes.
Líder religioso desesperado porque não tem mais como manipular\tirar dinheiro dos fiéis e líder religioso que cria o slogan “ Jesus não está de quarentena” e pastores e padres que choram porque não sabem como acolher\ orientar seus fiéis em momento tão trágico e famílias que não podem velar seus mortos e fake news fake news fake news e luto cruel infinito e desumanos políticos mostram suas verdadeiras faces e desfaçatez e Coiso que se nega a comprar vacinas.
Mortos e mortos e mortos subnotificados.
Multidão surtada que se reúne em festas + moradores de rua isolados e abandonados à própria (des) sorte + usuários de transporte público criminosamente aglomerados por falta de opção + classe média em seus estertores + professora que já não sabe o que fazer com as aulas online+ alunos de escolas públicas abandonados à própria sorte + Desministros da Educação pérfidos e ignorantes + multidão de mortos enterrados sem velório + demônio em forma de presidente diz que quem se vacinar pode virar jacaré.
Multidão de mortos enterrados sem velório.
Médicos e enfermeiros morrendo. Crianças sofrendo de depressão e ansiedade. Alunos de escolas públicas que perderam dois anos letivos. Famílias em luto desumano, cruel e sem fim. Trabalhadores em home office exaustos. Trabalhadores presenciais exaustos. Filas gigantescas nas portas dos bancos. Milhões de desempregados. Pequenos negócios falidos. Bilionários e milionários mais ricos. Mundialmente escandaloso número de mortos. Famintos e miseráveis. As vacinas chegaram!!!! Fake News sobre vacinas. Loucos que se negam a tomar vacina. Centenas vacinados. Milhares vacinados. Milhões vacinados. País semelhante a ter sido submetido a uma hecatombe nuclear. Rei louco finalmente deposto!!!
05 de maio de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o fim da emergência de saúde pública da pandemia Covid-19 em todo o planeta.
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As 70 perguntas que eu quis te fazer, professor – 2022
1. Por que todos os mundos e eras se interpenetram na aurora?
2. Se o girassol cessar seu giro diário, a carruagem de Apolo para?
3. O tempo dorme nas montanhas e no fundo das cavernas?
4. Que segredos os lobos uivam para a lua cheia?
5. O que Arthur procurava na África: tesouros, eternidades fugidias, versos nunca escritos, pequenas conchas na praia?
6. O coração de Frédéric sabe que voltou para a Polônia?
7. Sou uma aria de Tristão e Isolda?
8. O que é Elon Musk?
9. De que cepa se originou Vladimir Putin?
10. Por que os terraplanistas não deslizam da borda da terra? Por quê?? Por quê ???
11. Como traduzir em pensamentos a lucidez terrível que acompanha a febre?
12. Quando estaremos prontos para a morte?
13. Vamos sobreviver como desafio?
14. Você notará que aqui é uma festa de perguntas?
15. Por que sou multidões de perguntas?
16. De que é feito a coluna vertebral, o torso, as articulações, as pernas, os braços, as mãos, e os pés – Meu Deus, os pés! – dos bailarinos?
17. A que espécie pertencem os bailarinos, os tigres e as orquídeas?
18. Por que tudo o que sei só posso dizer desenhando ou cantando um antigo canto esquecido?
19. Por que os gatos amam as caixas de papelão?
20. Por que tenho a secreta nostalgia de não ter nascido gato?
21. O que os gatos enxergam no escuro?
22. Para onde voam os passarinhos quando morrem?
23. Quais pensamentos profundos habitam as borboletas?
24. Como o peso das libélulas se equilibra em cima de seu nome?
25. Por que a língua francesa mora no país do acento ortográfico?
26. As palavras exatas fogem, escapam, transformam-se em gotículas suspensas. Para que insisto?
27. O mais precioso que te escrevo está nas entrelinhas?
28. Por que o choro da criança ao relento, no meio da guerra, ecoa em ouvidos surdos?
29. Para que os humanos querem infestar as máquinas?
30. Por que os humanos gafanhotos querem destruir a casa onde vivem?
31. Por que amar dói tanto?
32. Por que o desejo está além e aquém, nunca aqui?
33. Por que não amar dói tanto?
34. Quando me casei com a minha liberdade?
35. Por que sempre estou à beira?
36. Qual melodia atravessa os corpos celestes?
37. O que os vírus nos contam sobre a vida?
38. Eram os astronautas deuses?
39. Por que nunca te falo o que quero falar, sempre a coisa aquém?
40. O que te escrevo queima. Por quê?
41. Senão for eu, quem?
42. Por que os saltos do sapato da dançarina flamenca pisoteiam meu corpo e sentidos?
43. O que sentiram as estrelas quando Vincent as derramou sobre as telas?
44. Por que nos jardins de Giverny a aurora, a curvatura dos raios solares, e as estações do ano são únicos?
45. Como os jardins de Giverny criaram Monet?
46. Por que a paixão é sempre cruel?
47. Qual é o contrário do amor?
48. Como reproduzir em palavras o toque das mãos do menino de cabelo vermelho?
49. Por que guardo o nome do meu amor em segredos de sete chaves?
50. O ar é o não lugar?
51. O que havia antes do Big Bang?
52. De sua caverna, apenas Platão assistiu ao espetáculo do Big Bang?
53. Quantos ocasos na superfície do mar são necessários para construir o não tempo?
54. Por que os humanos machos poderosos adoram uma guerra?
55. Por que o barco que naufraga com os refugiados é invisível?
56. Qual medo corrói as entranhas dos poderosos?
57. Quantos planetas terão ainda que nos expulsar?
58. Como o ódio ocupa todos os lugares vazios?
59. Você pode me ouvir como ouve a melodia que sai dos seus dedos sobre o teclado?
60. Me explique de forma sonora: Por que o piano tem 88 teclas?
61. Em que clave é escrita a música que emerge dos buracos negros?
62. Quando aspiramos profundamente as rosas vermelhas nos tornamos inteiramente perfumados?
63. Como reproduzir em sons o gosto da uva?
64. Como os animais riem?
65. Os campos de lavanda se estendem até o infinito?
66. Quem cria o balé de luzes da Aurora Boreal?
67. Onde eu estava quando não estava no planeta terra?
68. Onde estarei quando partir do planeta terra?
69. Quem pranteará os esquecidos?
70. Quem apagará a luz depois do fim?