Quatro poemas de Tatiana Faia
Tatiana Faia é doutorada em Literatura Grega Antiga com uma tese sobre a Ilíada de Homero. É uma das editoras do projecto Enfermaria 6 e autora de quatro livros de poemas: Lugano (2011), teatro de rua (2013), Um quarto em Atenas (2018) e Leopardo e Abstracção (2019) e de um livro de contos, São Luís dos Portugueses em Chamas (2016). Um Quarto em Atenas venceu o Prémio PEN Clube de Poesia em 2019. Vive em Oxford.
***
antonia
caminhamos pelas montanhas
como se se pudesse regressar do abismo
tu à frente, eu atrás
tu com uma corda às costas
calças curtas, uma camisola de malha
às vezes perdes-te à minha frente no trilho
pelo nevoeiro, o azul
da tua camisola confunde-se
com o cinzento da montanha
e eu chamo o teu nome
um som em perfeita queda
como a água ou a noite descendo
aguçada sobre os penhascos
de repente sei que não é este já
o tempo das revelações
as esquinas que virei em trastevere
tu pensas que é pouco o que resta
e talvez não baste e isto é a sério
eu penso se o pouco que resta
justifica paciência para tanto dano
estas são as pequenas perguntas
e as perguntas certas
os teus lábios fecham-se numa linha
isto é verdade o teu sorriso
vai ficar comigo muito depois
de termos batido a altitude
e regressado aos vales lá em baixo
e voltarmos a ser quem temos sido
mas são perfeitos os círculos que os pássaros
desenham acima dos ciprestes
cujas copas se cobrem agora de neve
e o cheiro do ar e o tilintar do teu cantil
gelado pela neve no bolso da tua mochila
não é bem isto a nossa pequenez
afundando-se na paisagem
os momentos de silêncio mudo
os momentos em que o silêncio
te esgotou e te fez falar demasiado alto
e nunca tão alto que chegasse para conversar
há entre nós duas
o mundo secreto de todos cadernos
e também este verso que agora é teu
gastei muitas folhas e muita tinta
e nenhum espaço que me cabe me conforta
queria ter vivido sem causar dano, antónia
mas até o amor, a alegria, a caneta esquecida num copo
e o papel de parede e a tua tosse enquanto
acendes mais um cigarro e estendes os braços
para abraçar o ar até a memória
do corpo despido e quente
e quieto entre os lençóis
tudo isso abre as suas feridas
pede as suas cicatrizes
um tempo que ultrapasse o tempo
medindo-o com a sua ternura
e com tudo o que se perde
com tudo o que vai e vem e não nos pode gelar
o corpo os dedos movendo-se lentamente
traçando o nome da minha cidade nas tuas costas
até a mais fechada das estações
se abre à tua frente
foste tu quem escreveu
um poema sobre um montanhista
que se perdeu as coisas despontam
até na incerteza e na espera
e na febre e no mais estéril dos tempos
até a erva que o gelo agora fere
com a sua aparência de lânguida lâmina
que um pouco de vento poderia desfazer
como se fossem frágeis cristais
pó como os corpos
o teu perfil, a atenção que olha adiante
e se precipita ansiosa sobre o tempo
até aqui na espera de quase nada, antónia
o teu olhar que cresce e o mundo
que recrudesce à nossa volta
Oxford, 22 de Novembro de 2018
*
os protestos
para a Clara Crepaldi
às vezes sonho que estamos
perdidas em protestos violentos
numa cidade qualquer
que não sei nomear ao certo
e que atacamos os monumentos
as fontes e as estátuas dos mortos
caídos em batalha
que desfiguramos os rostos
dos generais, dos escritores, dos compositores
calçamos sapatilhas e usamos bonés na cabeça
e do pescoço pendem-nos máscaras de gás
corremos à frente de contingentes da polícia
por ruas barricadas cujo traçado não sabemos ler
meio cegas e cansadas e a sangrar
queremos continuar a esmurrar os muros
com a cadência de um concerto de ira
escondemo-nos nas catedrais
e queremos rejeitar o mundo que os homens
construíram para nós
queremos construir outro mundo
há depois um breve momento de silêncio
e no escuro da imensa nave central
tu cospes sangue com a cabeça
escondida no meu peito
e nunca te abracei sem deixar de reparar
o quão mais frágil do que eu és tu
mais baixa e mais magra e de ombros estreitos
e ao mesmo tempo melhor a ficar calada
e muito melhor na paciência e mais vivaz
como se tudo o que nunca me contas
alimentasse a força com que voltas
a tudo o que precisas de terminar
das minhas amigas a melhor e a mais clássica
de todas no perfil e nos braços tatuados
de figuras negras e vermelhas
o grande órgão ao centro da igreja começa a tocar
no escuro e gente coberta de pó e sangue
como nós senta-se nas cadeiras austeras
velas acendem-se aqui e ali
e nós como duas raparigas
ao fim de um longo dia aprisionadas
nos bancos da escola
adormecemos de cansaço com as costas
contra pedras húmidas e frias numa rua
que devia dar para o monte parnasso
ou para a devastação de rituais irracionais
de onde se pudesse extrair outro começo
estudando cuidadosamente na penumbra
os rostos dos homens que entram e saem
tentando decidir quais de entre eles
não mereceriam algumas pauladas
cegamente desferidas
ainda que possa mesmo ser
que uma de nós venha a ser mãe de rapazes
ordeiros e que todos os dias se vistam
de fatos cinzentos para servirem os sonhos
lucrativos de um patrão medíocre qualquer
que lhes dê conforto suficiente
para alimentar a ilusão de que não são eles
parte dos explorados
e que explorar outros é necessário e justificável
um palerma que se penteie de risco ao lado
que para nossa maior raiva
alimente a multidão dos alienados
sacanas que queiram numa eleição qualquer
pôr a cruz no partido da extrema direita
dum psicopata qualquer incompetente até
a ser demagogo no seu ódio da humanidade
murmurando inanidades incoerentes
cheias de veneno e promessas de destruição
de tudo o que não cheire ou fale como ele
seremos talvez mães de filhos da mãe
dizes tu e rimo-nos com um desespero
fundo e com gosto
daqui de dentro
enquanto eu reparo nas tuas mãos esfoladas
não se vê mas à nossa volta
as ruas estão a pegar fogo
um coro de gritos espanta os ratos
temos cada vez mais sede
e há cada vez menos água
Paris, 8 de Dezembro de 2018
Oxford, 14 de Dezembro de 2018
*
arnisi
não parece mas o meu tempo esperou por ti
todo o outono e durante o inverno
na melancolia das torres num ângulo agudo com o horizonte
ocres em redor da mais alta das torres do relógio
e junto à cúpula no cimo uma varanda escondida
de modo a espiar bem do alto os transeuntes
e beijos roubados para as despedidas daqueles que apenas
vieram para ficar temporariamente
não eram bem-vindos, não eram para ficar
para lá da primavera
e à porta da livraria os italianos tinham aceitado trabalhos
na universidade pelos quais não seriam pagos
e consideravam isto uma honra
e liam robert louis stevenson na letargia das tardes
chegava-te então ao peito a noite mais secreta
que não entrou nos teus jardins que se ficou por entre
o verde colando-se aos rostos das estátuas
cujas cabeças viriam anos mais tarde
a pesar sobre o teu colo mas nada que se assemelhasse
a um corpo inteiro de suave movimento
entrando na escuridão de olhos abertos
com uma pequena lamparina roubada de um museu
quando a luz falhou e tivemos de caminhar
por corredores que se encheram de água
e havia na livraria um altar ao fundador de farfalhudo bigode
junto à lareira diante das janelas altas
ecos nos vidros e nos retratos
de um império distante um orgulho rasgado
saído de uma nostalgia por uma forma de lucro onde o ouro
se acumulou sobre papel e conveniência
com uma diligência avara mesquinha nos detalhes
acompanhada por fotografias de recortes de jornais
onde no título a letras capitais se lia sempre o nome do fundador
tu sorris para a fotografia e dizes que a melancolia
dele durou um século nesta cidade e começou
nesses anos onde a tua família manteve uma casa
na ásia menor não muito longe de constantinopla
onde as vinhas cresceram junto ao mar e negras
azeitonas como o mais escuro jade se fundiram com o ritmo da noite
e se revelaram verdes quase azuis diante da cor do mar
enquanto ao ouvido a tua voz basso profundo se tingia já
com aquela outra cor que os momentos amados ganham
quando já cifrados na sua nostalgia se revoltam
com a raiva da sua paixão com as mãos fechadas em punhos
e a manhã veio dos quartos dos amantes deixados
para trás e chegou em murmúrios pondo guarda ao outono
ao teu mundo de vinhas e romãs e obsessões mundanas
num século que se repete demasiado rápido
e seca como a cor que nas árvores se fecha
para a hibernação antes de uma morte que é cíclica
na tua voz e na campainha com que uma mão
te chamou para fora da casa bem cedo
numa manhã normal quando o capacete azul
da bicicleta abandonado junto ao pórtico e às colunas
se enchia de orvalho e a precisão da minha voz
tentou uma última vez amar a força de um nome escrito em água
crescendo até furar o ar com uma teimosia de raízes
e tu pediste que te deixassem sair para que pudesses
em vez das armas e do pesado metal das armaduras
amar os nós por que se destrinça a idade nas árvores
uma última vez como o camponês que nunca foste
o último poeta e o primeiro
a vir reclamar uma arte de prosperidade
na decadência das ruínas
e quando finalmente vestiste a camisa
que agora se vê nessa fotografia
onde nenhum de nós dois está
há no teu olhar um ligeiro assomo de surpresa
como algo que secretamente te tivesse puxado para trás
nos anos do exílio nunca mais voltaste a escrever
o nome da tua cidade e passavas as noites num bairro
que se encheu de estrangeiros
se não o amor dessa paisagem
que mudou tão depressa então nada
*
catástrofes a sério
para a Rita Taborda Duarte
ainda hoje sinto vergonha daqueles poemas ingénuos
escritos com muito melodrama à mistura
e uma grande falta de energia socialmente interventiva
numa casa com uma grande varanda em lisboa
que mais tarde numa primavera distante provocaram o desagrado
de alguns poetas masculinos da europa continental
que durante alguns dias numa cidade do norte
me apontaram o dedo para que eu sentisse
vergonha de escrever poemas daquela maneira
e porque tendo relido agora aqueles versos
a minha falta de testosterona se tornou indisfarçável
confesso que esses versos não sonhavam
com os grandes poetas masculinos do futuro
mas com duas ou três coisas simples mas pretensiosas
que às vezes acontecem entre as pessoas
eram poemas
inofensivos
às vezes os meus poemas cometem esta grande falha
pela qual queria pedir antecipada desculpa
não ofendem ninguém
outras vezes são demasiado ofensivos
como aqueles poemas que foram em tempos rejeitados
por não apresentarem uma imagem lá muito boa
nem sequer muito patriótica da nação
mas penso que até já em todos esses poemas maus
eu tinha decidido que um corpo deve começar
por ser a sua própria pátria
e que isto tem qualquer coisa que ver com escrever poemas
naquela altura
naquela primavera com os seus primeiros jardins claros
eu não queria escrever poemas cáusticos nem comprometidos
que no meu caso de resto eram capazes de soar
a politicazinha ranhosa
pela qual nos declaramos a favor de tudo o que é bom
e contra tudo o que é mau
no fim não por qualquer lenta e cuidada atenção
prestada ao mundo
mas para nos sentirmos bem com o próprio ego
toda aquela primavera
quis escrever os poemas de versinhos anémicos
que não me pareceram nem
necessariamente graves
nem necessariamente sérios
porque precisava de que aqueles poemas
não chegassem a lugar nenhum
em retrospectiva
talvez o que neles fosse imoral
tenha sido da ordem daquela coisa
do artaud de se vestir com os seus melhores fatos
para conduzir ambulâncias vindas da frente
na primeira guerra mundial
não sei muito bem explicar isto
às vezes uso de grande descuido com os meus poemas
mas penso que
não queria que dor nenhuma
nem as minhas nem aquelas que os poetas
têm o dever de cantar
sujasse aqueles embaraçosos poemas ligeiros
também eles pequeno-burgueses
dos quais ainda hoje sinto uma vergonha tremenda
porque reconheço que não havia neles
a mínima hipótese de transcendência
escrevi-os por sentir falta
de umas certas salas e de umas quantas janelas
do cheiro a madeira encerada que se desprendia do chão
da libertação da desordem que chega
no fim extremo do cansaço
por causa da euforia dos beijos
sei lá porquê
às vezes escrevo poemas
mesmo pelas piores razões
aqueles poemas não falavam do holocausto
e também não falavam do tédio
que os jovens millenials sentem
quando apanham comboios para curtas viagens
entre cidades suburbanas de pequenos países europeus
e sentem o impulso
de citar leonard cohen em bares apinhados
de anjos que estão cansados de explicar porque se extraviaram
também não falavam de faltas verdadeiramente graves
que os rapazes têm de expiar antes de se tornarem poetas
como a homofobia e o tédio da indiferença e a misoginia
dentro dos pequenos apartamentos
ao fim das tardes quando todo o mundo
até o dos poetas parece sordidamente doméstico
com um eco de água que alastra
sobre loiça suja
aqueles meus poemas eram muito folgados
e continham demasiadas falhas
porque naquela primavera
eu queria ver muito pouca coisa do mundo
e a interioridade de alguns poetas às vezes é pobre
e seca como terra queimada
sei então que aqueles poemas não chegavam a lugar nenhum
e não sei por que depois de tanto tempo
ainda hoje de vez em quando continuo a querer
escrever poemas anódinos e absurdamente banais
o que reconheço ser uma grave falha ética
que tem inspirado muitos maus versos
e falha em cumprir qualquer boa função social
os maus versos às vezes chegam em catadupa
é preciso pô-los a arder
Oxford, 12 de Abril de 2020