Quatro poetas de “Gaza, terra da poesia” – Poesia árabe contemporânea
Gaza, terra da poesia (antologia organizada por Muhammad Taysir)
Tradução: Michel Sleiman, Safa Jubran, Felipe Benjamin Francisco, Alexandre Facuri Chareti, Maria Carolina Gonçalves e Beatriz Negreiros Gemignani (coletivo GTPAC-USP – Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea). Edição brasileira de Michel Sleiman e Safa Jubran. Editora Tabla (2022).
Gaza, terra da poesia (no original Ghazza, ard al-qasida), é uma antologia que reúne poemas de 17 jovens poetas nascidos em Gaza na Palestina, dentre os quais o organizador da coletânea, Muhammad Taysir. O livro foi publicado em Beirute, em finais do ano passado, pela editora Almuassasa Alarabiyya Liddirasat Wannachr, e a edição brasileira, que a Editora Tabla lança este ano, é a primeira tradução da obra, em fato que constitui um ineditismo editorial: um livro árabe contemporâneo, um livro de poemas especificamente, terá como primeiro destino estrangeiro o Brasil de língua portuguesa. A tradução é uma iniciativa do GTPAC – Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea, coletivo coordenado pelo poeta e tradutor Michel Sleiman, professor de Língua e Literatura Árabe da USP, ao lado de alunos e ex-alunos da Graduação e da Pós-Graduação.
Amal, Mona, Fátima, Hiba, Basman, Muhammad, Hachim… os poetas de Gaza são jovens, não têm mais de 30 anos, mas sua poesia impacta. A maturidade dos versos talvez seja fruto de uma vida amadurecida às pressas, agarrada a um sentido urgente que faz da infância apenas um prelúdio. São jovens também seus tradutores Alexandre, Beatriz, Felipe e Maria Carolina, lapidados na frequentação da língua que estudam e da linguagem que depreendem dos versos da novíssima poesia árabe, ao lado do próprio Sleiman e de Safa Jubran.
Mais sobre a antologia aqui.
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Amal Abuqamar
Nascida na cidade de Gaza. É bacharel em Língua Árabe e professora no campo da educação particular.
Tradução de Alexandre Facuri Chareti.
Leite amargo
Abra a boca um pouco…
assim
a noite é como a noite,
cinzel que esculpe o desejo num corpo,
desejo que esculpe o vazio num rosto,
vazio que esculpe as paredes da aflição.
Ah meu Deus!
Meu ventre incha e se arredonda.
Carrego no corpo um míssil de guerra.
Ao que parece esse míssil se alojou durante as núpcias dos cadáveres atrás do rio.
Minha mãe me espera nos ombros da noite.
Domina-a o demônio do medo e ela grita.
O nada me belisca na parte abaixo da cintura
e entra em mim num armário abandonado.
Sussurro:
O Senhor me fez estéril,
não darei luz à existência.
Ele sussurra:
Não creio no Senhor como creio no coito da guerra após cada derrota,
não vejo o Senhor, vejo os cadáveres, sempre.
*
E você volta.
Criança que esqueceu na boca o mamilo da mãe e fugiu.
Ainda se delicia com o gosto do leite seco.
*
Você entende o que significa crescer em seu corpo o legado da derrota, do medo
e da fraqueza e a amargura do leite materno?
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Fátima Ahmad
Fátima é uma senhora palestina da Faixa de Gaza, que escapou várias vezes da morte. Numa delas, ainda jovem, depois de um episódio que a deixou bastante machucada, compôs este “pranto”. Imorredoura, Fátima é a Eva de Gaza. Nenhuma descrição a resume melhor do esta: é o rosto da Palestina que não envelhece.
Tradução de Maria Carolina Gonçalves.
Pranto em modo clássico pela terra da Palestina
Eu vou porque o cheiro da terra ainda me chama,
com toda minha determinação eu vou.
Não vou parar, não vou olhar para trás,
as sombras das vinhas me esperam, não vou olhar para trás,
o cheiro do café fervido ainda está lá, para onde eu vou,
ouço os ecos do arghul me chamando
e, dentro de mim, os poemas dos camponeses no tempo das colheitas.
Como é frágil a vida quando vivemos os poemas no estranhamento,
quando só o que nos separa deles é o cercado que rodeia nossas nuvens,
nossa terra, nosso céu, nossa chuva.
*
Eu vou para minha aldeia na Palestina.
Ela sente minha falta e eu sinto falta dela.
É um amor nato e latente,
é um fogo que não apaga.
Bissan, Alkármil, Yafa e Safad,
Alquds, Aljalil e Annássira,
deixem-me sofrer, ó cidades,
não chorem por mim, ó cidades,
talvez um dia as lágrimas ganhem asas!
*
Vocês não são como eu sou!
Você, elegante, não é como eu sou!
Você, senhora do vestido, não é como eu sou.
Tenho olhos diferentes,
tenho um país que espera
e um amor que não apaga!
Minha alma palpitou entre nuvens cor-de-rosa,
a chuva escoou entre meus dedos,
a paciência quebrou minhas costelas.
Sou aquelas letras esquecidas,
sou uma estrangeira que passou a vida escrevendo
com um coração de vidro,
e o ferro apertou e quebrou o vidro,
e porque não sou de ter vestidos
o chão não desistiu de mim
e em mim continua vivo.
Sou a erva do campo!
E vocês, quem são?
*
O pó da terra vem de longe,
vem das profundezas da Palestina
para tocar meu rosto, e eu choro…
Então, levantemo-nos para que não chore a senhora da terra,
saiamos daqui para que não chore a senhora da terra,
vamos com o novo maio,
porque maio ainda esconde nossos segredos,
os segredos da antiga Canaã.
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Yussra Assahar
Poeta e escritora do campo de refugiados de Jabália, em Gaza. Graduada em Língua Árabe pela Universidade de Alazhar.
Tradução de Felipe Benjamin Francisco.
Para uma tarde que se parece com você
Para uma tarde que se parece com você
e uma manhã ao alcance do amor
enfeito o horário das dez
num dicionário que diz
“eu te amo”
a poucos suspiros das urbes do desejo
bem, pois
eu te amo
maduro como a fruta de verão
que descasco e dou a forma de um país
nas tranças de meu coração.
Veja, sou a tempestade
num passeio insano
pelas nuvens do desejo
e eu
eu sou
um sonho ressurgido que faz tremer a maldição da distância
como aquela bailarina que segura o passo
ao final da dança
e pelos campos floridos
meus dedos colhiam você
num sorriso de jasmins
eu balbuciando para mim um texto
como um vestido que acabo de cortar
— corte alegre, da vastidão de sua boca.
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Muhammad Awad
Apresenta-se simplesmente como alguém com vinte e cinco anos de Palestina exilada.
Tradução de Beatriz Negreiros Gemignani.
Entre mim e o mundo há uma barreira que as palavras não atravessam
— Boa tarde, meu amigo, tudo bem?
— Bem, fumando ainda, apesar dos conselhos do médico, não escuto bem faz uns dias não sei por quê, é como se o ouvido estivesse cansado do “tudo bem?”, essa pergunta me provoca, é como se eu estivesse sendo conduzido para a forca e a mão de Achmawi me desse um tapinha no ombro enquanto ele me diz “não se preocupe, você não vai sentir a dor da morte”.
Escrevo respirando a geada, só as memórias me aquecem, sempre que o frio me acossa tiro da memória o pão quentinho que minha mãe preparava nas manhãs de escola, e quando me sinto sozinho coloco a mão de novo no bolso apertado das memórias e tiro dele minha namorada para que ela me abrace, e depois a devolvo, porque não quero me lembrar do restante da história, de quando me deixou sozinho debaixo do sol da nossa cidade triste, como um pedaço de tecido esfarrapado, como meia rasgada e largada no varal, ou como palma de palmeira espedaçada, e depois se jogou nos braços da ausência.
— Mas você está bem?
— Estou exausto, meu amigo, me sinto como se sentem os moradores do décimo andar quando o prédio vai desabar dentro de alguns instantes, como se, estranhamente, alguém tivesse me jogado numa garrafa e depois a fechasse com toda a força.
Entre mim e o mundo há uma barreira que as palavras não atravessam,
mas… ainda sou do jeito que me conheceu:
a poesia me conforta,
a música me faz chorar.