Quatro prosas poéticas – Por Gabriele Rosa e Carla Motta
NINHO
Terça-feira, vinte e cinco. Vestia o uniforme da escola. Amassada, atrasada, sonolenta. Não passei despercebida. Traída pelo rabo de cavalo. Olhos beijam chapisco. Pincel amolecido. Fenda rompida com o punho. Escorro. O tempo pausou num pesadelo. Voz dobradiça. Calça, chinelo, calçada. Aberta. Abarrotada. Alvo. Como é ser um buraco?
TERRACOTA
Encarei os enormes olhos verdes do pequeno. Passei os dedos por seus cabelos ralos. Repousei a palma sobre seu peito frágil. Por alguns segundos, me permiti vacilar em pensamentos. Coloquei-o no berço e apoiei a bochecha sob a grade de madeira. Fechei os olhos, rezando baixinho e pedindo para que no dia seguinte já não pudesse mais encaixá-lo em meus braços. Encarei seu rostinho covarde. Ele tinha o rosto da mágoa. Involuntário, puxei os lábios em repulsa e ele começou a chorar. Chorava tão alto que sentia que gritava pra dentro dos meus ouvidos. Tapei-os, mas pareceu abafá-los. O soluço fanho parecia rasgar-lhe o peito. Eu já sabia que nota cantava: era berro de fome. Estremeci. A brisa gelada atravessou a janela, soprando em meu corpo memórias manchadas. A cria novamente nos braços. Choro entalado, sem vida. Sorrindo por dentro por um eterno instante.
Série #Engasgos
Monique Lima lê “Dois minutos”
Nina Maria lê “Sequelas”
Lavínia é mais rosa que espinho de Gabriele Rosa e Carla Motta
Lavínia é mais rosa que espinho, novo livro de Carla Motta e Gabriele Rosa, recém-publicado pela editora Libertinagem (SP), reúne prosas poéticas sobre violências cotidianas de gênero. Femininos diversos narram horrores banalizados e brutalidades há muito tempo enraizadas na sociedade contemporânea. A obra tem tom de denúncia. De abraço. E de troca. O livro tece respiros e enfrentamentos por meio de versos cortantes e imagens quase que fotográficas do narrado, sem lançar mão de sutilezas poéticas. Tendo a personagem Lavínia – máscara social e genética da virtude feminina – da peça Tito Andrônico, de Shakespeare, como mote inicial, as autoras expandiram suas fabulações e experimentos artísticos-poéticos a partir de instalações performáticas homônimas ao livro; realizadas em 2017, e em 2019, na UFRRJ e no Centro Cultural Phábrika, respectivamente. Ressignificada a partir da fragmentação de vozes, despersonalizadas por vezes, entrecruzada por violências de classe, raça, sexuais, psicológicas, entre outras, Lavínia é mais rosa que espinho vestida de livro é um ajuste de olhar. Um convite à reflexão e ao ato. Um acontecimento. Luta e luto. Na impossibilidade de silêncio, as autoras se ancoram na linguagem para questionar e abraçar a vida delas e de todxs. É com a força da vulva que elas seguem em frente, juntxs, com Lavínia. “Na embriogênese da genitália, todo mundo teve vulva”. É na pulsão de vida que os espinhos vibram, se estes podem ser formados a partir de modificações nos ramos caulinares ou em tecidos foliares da rosa, entrar nas fendas, nas brechas de sentido, mergulhar nas feridas e nos silenciamentos dos femininos com fôlego de mar aberto se faz possível e urgente.
Gabriele Rosa (Rio de Janeiro – RJ, 1988) é coautora de Lavínia é mais Rosa que Espinho (Libertinagem, 2022) e de Fendas extraordinárias (Patuá, 2019). Historiadora, atua como dramaturga de processo e dramaturgista. Pesquisa os espaços heterotópicos entre a construção literária e a criação dramatúrgica na peça Memórias de uma Manicure, em produção pela Bonecas Quebradas Teatro. Tem contos e prosas curtas publicados em revistas literárias virtuais e antologias, entre as quais se destaca a coletânea Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto (Selo Off Flip, 2021).
Carla Motta é coautora de Lavínia é mais Rosa que Espinho (Libertinagem, 2022). Historiadora, escritora e educadora residente no estado do Rio de Janeiro. Atua nas áreas de educação e escrita criativa. Pesquisa nas áreas de História da Arte, Teoria da Performance, História e Linguagens, onde desenvolve seu projeto de interferência de linguagem corporal na leitura de códigos espaço-temporais. É membro do Coletivo CuidadoPoema, responsável pelos desdobramentos #CuidadoPoema e #shakespearenavalha.