Quatro trabalhos de Liliane Oraggio
Liliane Oraggio é poeticamente envolvida com a vida e com os processos do vivo. É jornalista especializada em temas do comportamento e terapeuta corporalista. Autora de Bordas da Seda (ed. Quelônio 2023); Ouço Vozes (ed. Oraggio/Colmeia, 2017), entre outros. Integra as Coletâneas Corpo de Terra ( Ed. Quelônio, 2021), Corpo: Animal em Extinção (Ed. Urutau 2023) Pandemos – O Diário da Peste (ed. Rua do Sabão/Grupo Estudos de Narrativas Médicas-USP (2022).Nasce e vive em São Paulo, onde clinica e ministra as Oficinas Corpo, Escuta e Escrita para Profissionais de Saúde, tema de sua pesquisa de Mestrado em Ciências da Saúde (Unifesp).
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Bordas da Seda (Ed. Quelônio/2023)
Sedou… Sedou
Tornou de seda a dor
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mato no peito
a asfixia do mundo
pneumonia
@prosamiúda/2022
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Em trânsito
Estava em trânsito. Mário tinha saído de Amsterdã ia para Munique, via Madri. Não suportava o ar condicionado do avião, que compactava todos os odores. O café, o omelete, o banheiro, os perfumes e loções de barba da tripulação, o aroma da sua velha pasta de couro que continha os documentos da dupla cidadania recém-renovada. Agora ele sentia todos os cheiros misturados e de novo não pertencia. Mário nasceu italiano, tinha sangue árabe e espanhol, veio no colo da mãe para o Rio de Janeiro e depois a diplomacia o levou para a Holanda. Lá conseguiu se arquitetar melhor e achou seu grau de umidade perfeito. Oito horas e 840 quilômetros depois, sua sorte estaria lançada para além daquelas fronteiras confortáveis. Aeroporto movimentado, esteiras rolantes, pensamentos em torvelinhos, pés fincados, boca seca. Mário entrou no cubo de vidro sem teto onde os fumantes enchiam os corpos vazios de fumaça. Sem encostar em nada, ficou lá baforando, tentando sorver o futuro e se livrar da falta de ar. De um modo mecânico, ergueu o queixo, viu uma última nesga azul no céu nublado e fechou os olhos. Foi quando sentiu a pele espessar e a gravidade deixar de existir. Num gesto rápido, perdeu sua última marca de humanidade: apagou o cigarro. Agora era feito de mãos-barbatanas. Pele-escamas. Narinas-guelras. Pés-rabo. Costelas-espinhas. Língua-rádula. Porém, sentia que ainda era capaz de babar e sua saliva alterava o PH da água de todo o aquário. Quanto mais nadava, mais babava. As paredes se abriram e ele escorregou viscoso, sem rumo. Caudaloso e ácido foi secretando seu próprio oceano, de águas sem nome. Esse era o seu lugar. Sempre em trânsito. Sempre seu.
Finalista Prêmio Off Flip 2022, categoria Contos