Que palavra nos move – Coluna Escritas em Revoada
Enquanto mulheres que escrevemos nas dobras do nosso existir, insistindo contra as negativas, teimando apesar das anulações, criando rotas alternativas para driblar as preferências patriarcais que nos concebem – quando o fazem – apenas como meros adornos ou remendos, a manutenção de espaços de criação e livre expressão, fortalecimento de laços e palavras, como tem sido esta coluna, é também luta bravia e celebração, a cada bimestre. Então, que celebremos e continuemos!
Somos movidas pela palavra que arrelia, convoca pra gira de dizer e fazer, acalanta, mas também convida para a permanente resistência. E que palavra é essa? É a palavra de si, de ser, de sentir. Não há modelo, glossário, dicionário; a palavra que nos move é nossa e atravessa qualquer manifestação de tempo, espaço, matéria, poder. Formigando em nossas línguas, cutucando nossos dedos, soprando sentidos aos nossos ouvidos e rebuliçando pensamentos e pelos, a palavra que é nossa encontra-se com a palavra tua; essa palavra-mãe, palavra-avó, palavra-filha, palavra-pagã e vai confabulando insurreições.
Não podemos negligenciar o fato que as mulheres que fogem ao padrão branco cisheteronormativo, assim como as que vivem nas periferias, nas zonas rurais, em territórios subalternizados, as mães solo, têm que gritar mais alto, enfrentar mais barreiras, anulações e isso, além de afetar o seu/nosso potencial criativo, também cansa e adoece. A palavra que move essas mulheres é delas e só elas sabem onde corta e sangra. É palavra que precisa ser dita mais vezes e sempre mais! Digamos! Deixemos que digam! Façamos eco!
Mas, e quando a palavra não sai? Quando a palavra se engancha nos fios intermináveis das tarefas domésticas, nos barbantes da insegurança, nas tramas da síndrome da impostora? Como libertar a palavra? Em sua carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo[i], Glória Anzaldúa nos chama à reflexão sobre a escrita feita por nós mulheres e, com ela/ por ela, também te convoco a pensarmos sobre a palavra que nos move:
Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato —esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de tomate, curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar apena? Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras, muito mais sentir e acreditar que podemos! (Anzaldúa, 2000, p.230)
Sim, não é fácil escrever sendo mulher, dissidente, além das linhas finas do padrão, à margem dos grandes centros, assoberbada de tarefas impostas pela desigual demarcação de papéis sociais, engolida pelas intermitentes cobranças do capitalismo. Não é fácil escrever; dói, acorda fantasmas, aviva medos, mas apesar de todos os obstáculos e censuras, escrever liberta! Tome, pois, tua palavra e voa! Corre ao encontro da tua palavra-avó, da tua palavra-mãe, da tua palavra-criança e te desobriga dos silêncios!
Eu te convoco a soltar a língua no ano que logo vem! Solta a palavra, Carol, Ádila, SertãoSol, Fátima, Márcia, Rillary, Verônica, Rayane, Lysa, Nina, Thaís, Mariana, Aury, Ariane, Hannah, Yasmin, Milena, Bia, Quele, você que me lê agora, vamos?!
Pók Ribeiro
& todas que constroem estas Escritas em Revoadas
[i] ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Tradução: Édna M. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v.8, n. 1, 2000, p. 229-236. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880
Na coluna bimestral Escritas em revoada, Ádila Madança, Pók Ribeiro e SertãoSol trarão retalhos e reflexões das suas escrevivências e de outras tantas mulheres do semiárido baiano, interconectando literatura com outras linguagens artísticas produzidas por mulheres. As colunas alternarão reflexões em torno do processo político-poético, entrevistas com mulheres escritoras do semiárido e degustação de textos literários e outras criações artísticas, numa perspectiva de enfrentamento aos padrões coloniais silenciadores. A coluna irá ao ar…. de cada mês.
Sobre as colunistas:
Ádila Madança é artista e mãe, natural de Juazeiro/BA, que transita entre as linguagens da literatura, teatro e performance.
Pók Ribeiro, é poeta, escritora e professora da educação básica. É autora dos livros Pedilua (2017) e Endométrio (2019) e um das organizadoras da LiterÁridas, uma antologia de mulheres poetas do semiárido baiano.
SertãoSol é artista arteira, agrocaatingueira e segue trançando caminhos poéticos que a levam a magia das linguagens literárias.