“Rê Bordosa: do começo ao fim” de Angeli – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com um texto sobre Rê Bordosa: do começo ao fimde Angeli prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Rê Bordosa: do começo ao fim | Angeli
No sábado, 26 de agosto de 2023 fui à Feira de troca de livros da Mário na Biblioteca Mário de Andrade com minha filha Sofia e lá encontramos minha sobrinha Hanah acompanhada de sua prima Dani. O evento acontece todo último sábado do mês e é a segunda vez que participamos. Sofia trocou seus livros por edições da Série Vaga-Lume que ela está fazendo coleção: O rapto do garoto de ouro de Marcos Rey, A montanha das duas cabeças de Francisco Marins, Na mira do vampiro de Lopes dos Santos e Um gnomo na minha horta de Wilson Rocha.
Hanah trocou uma cacetada de livros de vários gêneros e ficou entusiasmada por ter encontrado três edições da Patuá, editora que ela está colecionando. Vamos lá: A mandrágora de Maquiavel, Contos de fantasmas de Daniel Defoe, Máscaras de Leonardo Padura Fuentes, Santos de vento de Celina Castro, Mão de ferro de Charlie Fletcher, Ainda resta uma esperança de Johannes Mario Simmel, Um palmo abaixo: uma comédia de humor negro de Tibor Fisher, Quase memória de Carlos Heitor Cony, Deuses de dois mundos de Andrew Mayne, Zumbis X unicórnios de vários autores, Noturna de Mariana Vieira Gregório, Alarido de Bruno Molinero, Minha língua é um ponteiro que lambe o tempo de Roberto Andreoni, Pandemia: 27 poemas brasileiros de Álvaro Alves de Faria, Sphera de Marco Lucchesi, Ossos açucarados de Rafael Faria, Caderno de rimas de João de Lázaro Ramos, O encontro de Michele Iacocca, Vira-lata Finório de Silvinha Meirelles e Chris Mazzotta, Clave de lua de Leo Cunha e Eliado França, A bruxinha dos nós de Ana Carolina Fernandes de Araújo, O violino maravilhoso de Nádia Loureiro, Descanse em paz, meu amor de Pedro Bandeira, A 8ª série C de Odette de Barros Mott e Os egípcios (aleatório). Ufa!
E eu também fiquei muito contente com as minhas trocas: Verdes vales do fim do mundo de Antonio Bivar, Cartas do meu moinho de Alphonse Daudet, Limite branco de Caio Fernando Abreu, Berço de ouro de John Steinbeck, Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 de Manuel da Costa Pinto, A outra Europa de Hans Magnus Enzensberger, A caixa de Günter Grass e Un pajarito me contó de Ana Maria Machado.
Antes de sair da biblioteca para lanchar com a turma fui abordado pelo amigo de redes sociais e seguidor do meu canal no YouTube Poesia Nunca Mais, Ivan Torraca que generosamente me presenteou com o livro Rê Bordosa: do começo ao fim de Angeli. Então vamos a ele.
Entre domingo e segunda-feira li, ou melhor, reli as tirinhas da Rê Bordosa. Já havia lido há mais de vinte anos a revista Chiclete com Banana Especial, Rê Bordosa: a morte da porraloca em formato extra large. Agora reli em pocket book.
Em 1989, ano em que me mudei de Taubaté para São Paulo, por conta da separação de meus pais, fomos morar, eu, minha mãe e meu irmão Alexandre (pai da Hanah), no quartinho dos fundos da casa de meus avós maternos. Ao lado ficava o quarto dos meus tios mais jovens e solteiros na época, Paulo e Marcos, o primeiro ainda adolescente e o outro recém-saído da adolescência. Em 89 eu tinha 11 anos e o Xande, 8. O quarto dos caras era forrado de referências tanto da cultura erudita quanto da cultura de massa. Dentre as coleções, havia muitos quadrinhos adultos: Asterix de Goscinny e Uderzo, Sandman de Neal Gaiman, Groo de Sergio Aragonés, Justine de Guido Crepax, RanXerox de Tamburini, Pazienza e Liberatore, Níquel Náusea de Fenando Gonzales, Geraldão de Glauco, Piratas do Tietê de Laerte, Chiclete com Banana de Angeli, Animal, Circo, entre outros.
As histórias em quadrinhos foram a minha porta de entrada para o mundo da leitura. É claro que antes dessa galeria eu havia curtido as revistinhas da Disney e da Turma da Mônica. Mas o meu ingresso para um conteúdo voltado para o público jovem-adulto partiu dali.
A estética anárquica, os movimentos de vanguarda e de contracultura, a literatura beat, maldita, marginal, enfim, o underground, toda essa vertente teve como pontapé inicial a Chiclete com Banana. E isso é incontestável.
Por volta dos meus 13 anos, disquei o número de telefone da redação da Circo Editorial, que vi impresso na ficha catalográfica de uma edição da revista, e do outro lado da linha atendeu o editor Toninho Mendes.
“Eu quero falar com o Angeli!”, eu disse com a minha voz roufenha pré-pubescente.
“Quem quer falar com ele?”
“É o Andre!”
Toninho Mendes gritou:
“Angeli!!! Andre na ligação quer falar com você.”
Bateu um pânico e eu joguei o fone na mão do Alexandre. Na sequência, o cartunista atendeu.
“Alô”, fez meu irmão.
“(…)”
“Eu tenho 10 anos.”
“(…)”
“Eu gosto de ler a Chiclete com Banana.”
“(…)”
“Tá bom. Tchau.”
Desligaram.
“O que ele disse? O que ele disse?”, perguntei.
“Ele perguntou a minha idade, disse “vai ler alguma coisa que presta, moleque!”, deu risada e se despediu.”
Caímos na gargalhada. O telefonema para o célebre cartunista virou uma história lendária entre irmãos.
Ainda conservo as edições da Chiclete e de outras publicações da época empilhadas na casa da minha mãe no interior de São Paulo. Às vezes bate aquela nostalgia e dou uma folheada nelas. São do tempo em que eu era virgem e onanista, tímido e com a cara cheia de espinhas, andava de skate e bicicleta, pichava muro e fazia grafite, frequentava as matinês em danceterias e shows de rock, gostava de desenhar e sonhava em ser artista plástico…
Rê Bordosa: do começo ao fim cobre o período de 1984 a 1987, quando Angeli publicava as tiras da porraloca na coluna de quadrinhos da Folha de São Paulo. O livro é dividido pelos seguintes capítulos: Diabo no corpo: a vida e obra de uma porraloca – Snif id-ego cof! Rê Bordosa vai ao analista – A mãe da Rê Bordosa: a culpa é dela – Atrás da mãe sempre vem… o pai – Les amantes: histórias de cama, mesa e banho – Pentelho na banheira – A louca no ar! – Suicidamente – Férias: o dia em que Rê Bordosa tomou um bronze – Grávida – A desvairada contra o vírus da aids – Broxante! – Tortura! Chocante: o assassinato de Rê Bordosa: Angeli, the killer.
Nas tiras, outros personagens famosos da galeria de Angeli dialogam com Rê Bordosa, como o macho escroto Bibelô e o revolucionário de boteco Meia Oito.
Como adendo a publicação, em outubro de 1995, o cartunista produziu a sequência Memórias de uma porraloca dividido em: Arquivo X – Comendo o mundo – Homem é encrenca – E agora são cinzas – Vestida para matar.
Na morte da porraloca, Angeli aparece como autor-personagem torturando até levar a sua criação mais famosa à morte. O cartunista resolveu dar cabo de Rê Bordosa, pois se sentia como o dr. Frankenstein por ter criado um monstro, perdendo o controle de sua criação.
Rê Bordosa é uma personagem que concentra em si tudo o que o machismo estrutural condena em uma mulher. Ninfomaníaca que é, ela sai à noite sozinha de bar em bar, de festa em festa, exposição de arte e o que vier, para caçar homens e algumas mulheres também. Bebaça ou de ressaca, às vezes fica com o garçom, outras vezes leva o taxista para casa ou ainda, se se afoga numa badtrip na banheira, não dispensa o entregador de pizza. Ela se entope de comprimidos, drogas, enxuga um litrão de vodka e se por acaso acorda na casa de um mané que não consegue reconhecer e não tiver álcool, se embebeda com os frascos de perfume da prateleira do banheiro.
Rê Bordosa virou peça de teatro e longa-metragem de animação com dublagem de Rita Lee.
O nome da personagem é uma corruptela da palavra rebordosa que significa: “1. situação de conflito, confusão, alvoroço.” Coisa que cabe a personagem. E “2. advertência severa, enérgica, repreensão, censura.” Algo que passa longe das características da Rê Bordosa, pois ela jamais se furtaria em refrear os seus instintos mais primitivos.
Rê Bordosa é o prenúncio da mulher libérrima do século 21, uma mulher que tem como estilo de vida a tríade sexo, drogas & rock ‘n roll, o espírito da contracultura. Mas ela paga o preço por suas escolhas com a autodestruição por viver sob a mira de uma sociedade machista e excludente.
Rê Bordosa: do começo ao fim é uma HQ regada à álcool e humor ácido, marca registrada de Angeli e sua gangue.
Valeu, Ivan!
Edição lida:
ANGELI Filho, Arnaldo, Rê Bordosa: Do começo ao fim, ilustrações do autor, 160 p., Porto Alegre: Coleção L&PM Pocket, vol. 519, 2006.