Renascer é um ato de amor – Por Michel Yakini-Iman
A Coluna Michel Yakini-Iman apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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Renascer é um ato de amor
Quando lancei o livro acorde um verso, em 2012, fiz desse trabalho a coroação de um renascimento. Dois anos antes nasceu minha primeira filha, chamada Yakini. Nessa época eu trabalhava como professor na Fundação C.A.S.A, mediando encontros com jovens que estão privados de sua liberdade. O envolvimento nesses trampos é uma linha tênue, por vezes causa um banzo profundo que pode levar até a depressão, pois eu estava dando aula pra jovens encarcerados que eram muito parecidos comigo e isso me dava a sensação de ser mais um aprisionado naquele sistema.
Chegava em casa tão esgotado daquele cotidiano que mal tinha forças pra brincar e dar atenção digna pra Yakini. Percebi que não era justo estar extremamente dedicado aos jovens que eu dava aulas, sofrendo uma constante frustração pela falta de liberdade deles, enquanto não conseguia promover um laço de carinho e afeto com a minha filha. Talvez tenha faltado equilíbrio da minha parte, mas naquele momento não encontrei outra saída a não ser deixar aquele trabalho pra estar mais perto da minha pequena.
Como estava preparando o lançamento do livro acorde um verso, senti que o nascimento da Yakini e dessa obra poderiam ser um marco de mudança na minha trajetória e saúde emocional. O livro era uma busca de me aproximar da literatura negra e da ressignificação da linguagem, da perspectiva autoral, da ética e da estética que me encanta ao ler os textos de José Carlos Limeira, Éle Semog, Cuti, Marcio Barbosa, Miriam Alves, Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, uma geração de escritores e escritoras que conheci através da antologia Cadernos Negros.
Com esses textos aprendi a enxergar outros horizontes pra criação literária e também a importância de batizar as crianças com nomes de origem africana, já que um dos livros lançados pelo Quilombhoje Literatura, responsável pela edição dos Cadernos Negros, é a obra Nomes Afros e Seus Significados, onde encontramos o nome Yakini, que siginifica verdade/certeza ou mãe da verdade, por conta do prefixo Ya, e vem da chamada Àfrica Ocidental, da parte oeste do continente.
Na apresentação do livro Nomes Afros está escrito: “Quantas pessoas podem dizer o significado do seu nome? Quantas podem apontar-lhe a origem? Um nome, enfim, é uma dádiva e nomear é dar um significado, uma identidade, é transmitir uma herança. Nomear é, pode-se dizer, um ato de criação, de reinvenção de uma realidade. É, sobretudo, um ato de consciência e de amor”.
Levando em conta que os nomes de origem africana eram proibidos durante a colonização e os africanos que chegavam aqui eram rebatizados com nomes de origem portuguesa, dar nomes às crianças com base nas nossas origens negadas é um ato de reparação. Assim foi com a Yakini. Logo depois, pedi permissão, assumi o nome dela como herança e passei a assinar meus trabalhos como Michel Yakini, num movimento de inverter essa lógica onde os mais velhos dão o nome aos mais novos mantendo as marcas coloniais.
Agora, em 2021, nesse olho do furacão que estamos passando, me encontro novamente em meio aos renascimentos, pelas condições do período, preparando o lançamento de um novo livro e passando por outras mudanças significativas. A principal delas é a chegada da minha segunda filha, a qual chamamos de Inaiê Iman, retomando o sentido de ancorar nomes ancestrais. Inaiê vem dos povos originários e significa águia solitária e Iman, vem da região da Somália e significa fé, sinônimo de certeza. Então ficou Inaiê Iman – Fé da águia solitária.
Quando Inaiê nasceu a Yakini me perguntou se eu iria colocar o nome da Inaiê na assinatura do minhas obras. Pensei que não fazia sentido, já que a primeira mudança foi motivada por outros contextos. Mas bastou eu presenciar o renascimento da Yakini durante os rituais de iniciação que ela tem feito aos voduns, como filha do senhor Xapanã no Tambor de Mina, pra chave mudar novamente. Nessa passagem, Yakini também ganhou um novo nome, que é Dùteyékan (a vodunsi foi escolhida), de origem do grupo linguístico ewe-fon.
Na primeira visita que fiz ao terreiro onde a Yayá se dedica percebi que meu nome deveria mudar. A junção dessas irmãs é intensa e ao acompanhar o processo da Yayá senti uma vibração forte no Orí e a intuição me dizendo pra eu colocar a irmã caçula ao lado da Yakini, pra me deixar ser ao lado delas, e que isso deveria acontecer com o segundo nome da Inaiê. Por isso, é assim que renasço na presença das filhas, formando uma trindade de vida, fortaleza e proteção, com essa dupla de amor abundante que firma as certezas do meu caminho. Então, muito prazer, a partir de agora me chamo Michel Yakini-Iman.
(Ilustração Amanda Alves Prado).