Um conto de Ronaldo Pelli
Ronaldo Pelli Jr. foi finalista do prêmio Rio 2017 de literatura na categoria Novo Autor Fluminense com o romance Maquinação, ainda inédito. É escritor, jornalista, roteirista e mestre em filosofia. Nascido em Nova Iguaçu, em 1981, na Baixada Fluminense, vive desde 2002 no Rio de Janeiro. Já passou por várias redações de jornais e publicou contos em A primeira pessoa (Editora Autografia, 2014) e a novela Autoassassinato (Editora Autografia, 2014).
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FIM DE MUNDO
Não houve qualquer anúncio antes de o mundo acabar. Um dia qualquer, talvez uma quarta-feira – a data não importa, o tempo saiu do ar –, e houve quem percebeu ainda na noite anterior. Em comum: algo tinha mudado assustadoramente. Não foi mudança de grau, apenas, mas de natureza. Era outra e não havia como voltar, não mais. A partir desse instante impreciso, havia uma percepção coletiva de uma realidade absolutamente diferente, um jeito alterado de ser nesse novo, velho, estranho e perigoso mundo que se iniciava agora, então. Todos sentiram o baque de maneira mais ou menos intensa, dependendo da proximidade do epicentro do maremoto.
As mortes se alastraram. Foi o primeiro sinal. Inicialmente silenciosas, como radiação, depois aos borbotões, hemorrágicas. Violências diretas contra as populações mais desprotegidas e de pele mais escura. Guerras fratricidas, incentivadas com armas de calibre e tecnologias importadas por soldados não exatamente brancos a mando de homens de bem, para a proteção das suas próprias famílias, a defesa de tradições malversadas e para se apropriar dos despojos dos vencidos. Melhor seria dizer genocídios: eram forças absurdamente desiguais em combate. Exércitos mesmo desorganizados (como sói) massacrando populações que até tentavam se defender. Mas a diferença de poder não permitiu.
A população caiu vertiginosamente, em pouco tempo. Raros, os que ficaram viviam acuados, andando perdidos por regiões ermas, em constante fuga assustada. Estavam sempre expostos, em uma deriva febril e insegura.
Depois das mortes, vieram as desgraças prolongadas, as misérias e as doenças crônicas. A fome se alastrou até em regiões ricas. A pobreza profunda, mesmo para quem nem sabia o que era isso. Moléstias que estavam além dos conhecimentos sobre saúde da época se tornaram banais. Vícios novos que destruíam vidas, mesmo ainda em vida. Existências completamente anestesiadas, apenas esperando impacientemente a morte chegar.
Nos anos que seguiram, suicídio e depressão. Preconceitos. Eram atacados simplesmente pelo tom da pele, pelo sotaque, pelos hábitos. Eram motivos de piadas, associados aos piores valores. Mortos-vivos.
A Terra arrasada, deserto que avança. A comida apodrecia ainda nas árvores. A água de rios e mares envenenada. Os peixes tentavam respirar o ar, e morriam intoxicados. Os demais animais, acuados, perceberam que o mundo deles também tinha acabado – e foram exterminados no atacado, igualmente sem qualquer consideração. As colheitas, abandonadas. As matas, obliteradas. O solo se incendiava espontaneamente, as chuvas absolutamente irregulares. Não foi apenas uma população que morreu, mas um mundo inteiro que expulsou o anterior.
Desde a chegada do primeiro invasor europeu, o fim do mundo para os indígenas continuou a acontecer, sem interrupção, sem respiro. Os que sobraram continuaram a buscar maneiras de não apenas sobreviver, mas de viver, bravamente, no máximo de sua inteireza. Poucos conseguiram, mas ainda sustentam o mundo.