“Segunda ou terça” de Virginia Woolf – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com um texto sobre Segunda ou terça de Virginia Woolf prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Segunda ou terça | Virginia Woolf
O charmoso livro de bolso Segunda ou terça de Virginia Woolf traz oito short stories e um ensaio (único não selecionado pela autora, mas acrescentado na edição por mencionar a publicação). O livro foi impresso em edição artesanal na sala da casa do casal Virginia e Leonard Woolf em 1921 com projeto gráfico da artista Vanessa Bell, irmã de Virginia, e repleto de erros de tipografia.
O primeiro conto, Uma casa assombrada, traz uma voz narrativa fantasmagórica em primeira pessoa do plural (nós) a apontar e a descrever os tais “eles” de forma ambígua. É um conto curto que prima pelo conflito da voz narrativa acerca de quem na realidade são os fantasmas. A narradora que fala por este “nós” (ou seriam “eles”?), os seres do outro mundo. A reler.
O conto seguinte, Uma sociedade, traça uma visão do mundo masculino e do papel da mulher na sociedade patriarcal. A submissão da mulher ao julgo masculino, a essa opressão histórica. A narradora inicia o conto, também em primeira pessoa do plural (nós), como uma espécie de representante dessa sociedade de mulheres composto por um pequeno grupo de “seis ou sete de nós”.
No decorrer da história, ela vai elencando as jovens: Poll, a mais estranha, é herdeira de uma fortuna que seu pai deixou em testamento sob a condição de que ela lesse os livros da Biblioteca de Londres. Poll não é nada atraente e tem consciência disso, pois cai em prantos quando as demais começam a falar sobre homens.
Jane é a mais velha e a mais sábia da Sociedade.
“Nós passamos todas essas eras presumindo que os homens fossem igualmente diligentes, e que suas obras tivessem igual mérito. Enquanto dávamos à luz crianças, supúnhamos que eles dessem à luz livros e pinturas. Nós povoávamos o mundo. Eles o civilizavam.” (p. 13)
Rose é a mais engraçada. Se vestiu de príncipe da Etiópia e embarcou em um navio de Sua Majestade. Conta às amigas que ao ser descoberta pelo capitão do navio “exigindo resgate da honra da Marinha”, levou seis palmadinhas no traseiro. Por sentir-se ultrajada, o capitão permite que ela revide com “quatro lambadas e meia na parte inferior das costas”.
Fanny é incumbida de visitar os tribunais onde constata que os juízes são feitos de madeira. Depois de despertar de um sono profundo durante um julgamento, a tempo de ver os condenados serem conduzidos a cela no piso inferior, julga que os juízes não possuem o menor sinal de humanidade.
A Helen coube a Academia Real. Ao invés de relatar a sua visita ao local, pôs-se a recitar um poema enfadonho.
Castalia faz anotações sobre os relatos das companheiras. Na sua vez, fala sobre a sua experiência como servente em Oxbridge nos aposentos de diversos professores. Castalia se mostra reticente quanto ao conforto do professor Hobkin.
“Como combinado, passei a semana passada em Oxbridge disfarçada de servente. (…) Esses professores vivem em casarões construídos ao redor de gramados, mas cada qual solitário em uma espécie de cela. E, no entanto, têm todas as conveniências e confortos. Basta apertar um botão ou acender uma pequena luz. Seus papéis são lindamente arquivados. Livros, os têm em abundância. Não se veem crianças ou animais, salvo por meia dúzia de gatos de rua e um priolho velho – um galo.” (pp. 17-18)
A intenção do grupo de moças em Uma sociedade talvez seja investigar “o objetivo da vida”. Para tanto, elas fazem um juramento de não se casarem, até que Castalia retorna de Oxbridge com a notícia de que vai ter um bebê. O grupo chega à conclusão de que “o objetivo da vida é produzir boas pessoas e bons livros”. (p. 24)
“É evidente que nos desprezam”, disse Eleanor. “Ao mesmo tempo, como você explica isso – eu fiz pesquisas entre os artistas. Pois bem, nenhuma mulher jamais foi artista, foi, Poll?”
“Jane-Austen-Charlotte-Brontë-George-Eliot”, vociferou Poll, como um homem vendendo bolinhos em uma ruela.
(…)
“Desde Safo não existe uma mulher de primeira linha…”, começou a dizer Eleanor, reproduzindo algo de um jornal semanal.” (p. 26)
É declarada a Guerra e os homens marcham para o combate nas trincheiras. “A verdade nada tem a ver com literatura.” (p. 28) Com o resultado da Guerra, cinco anos depois dos encontros, o grupo revê seus conceitos quanto ao objetivo da vida ser produzir boas pessoas e bons livros.
“Ó céus”, exclamou Castalia afastando de si o livro, “que tola fomos! Tudo culpa do pai de Poll”, acrescentou. “Penso que ele o fez de propósito – aquele testamento despropositado, digo, forçando Poll a ler todos os livros da Biblioteca de Londres. Se não tivéssemos aprendido a ler”, disse ela, amarga, “talvez ainda estivéssemos tendo filhos em plena ignorância e esta, creio eu, teria sido no final das contas a vida mais feliz.” (p. 29)
E mais adiante:
“- Como posso criar minha filha para que não creia em nada?”
“Seguramente pode ensinar-lhe que o intelecto masculino é, e sempre será, fundamentalmente superior ao da mulher?” (p. 30)
Mas que intelecto superior é esse que corrompe os homens, os degrada e os conduz inevitavelmente à ruína da Guerra?
No conto Um romance não escrito a narradora personagem lê o Times e ao mesmo tempo levanta os olhos das páginas do jornal a fim de observar as pessoas em uma viagem de trem, até que se depara com o rosto da “mulher infeliz”.
“Será que eu li corretamente? Mas o rosto humano – o rosto humano acima da página mais cheia de letras impressas carrega mais, oculta mais.” (p. 44)
Em Os jardins de Kew o casal Eleanor e Simon passeia com as crianças, Caroline e Hubert. “O homem andava umas seis polegadas à frente da mulher.” Os jardins trazem recordações para o homem.
“Quinze anos atrás estive aqui com Lily”, pensou ele. “Sentamo-nos em algum lugar por ali, perto de um lago, e eu lhe implorei que se casasse comigo ao longo de toda aquela tarde calorenta. Como a libélula voava em torno de nós: vejo-a nitidamente, bem como o sapato de Lily, com a fivela prateada quadrada sobre os dedos.”
(…)
“E meu amor, meu desejo, o estava na libélula; por algum motivo pensei que se ela pousasse ali naquela folha, aquela folha larga com a flor vermelha ao centro, se a libélula pousasse naquela folha, ela diria “sim”.” (p. 64)
O fluxo de consciência característico da obra da autora já se apresenta de modo muito acentuado nesse conto do volume Segunda ou terça. Suas observações a respeito da flora e da fauna humana nos jardins, levam Simon a refletir sobre os rumos que sua vida tomou e como seria se Lily tivesse aceitado o seu pedido de casamento.
Não fiz nenhuma marcação sobre o conto A marca na parede. Só posso adiantar que se trata de um conto muito marcante.
O volume encerra com o ensaio A ficção moderna que foi encaixado pela editora brasileira ao fim do livro de contos por mencioná-lo, como uma espécie de adendo, quase um posfácio.
A escritora inglesa Virginia Woolf foi membro – eu diria anfitriã ou líder – do círculo de Bloomsbury, o qual também frequentavam a pintora Vanessa Bell (irmã da autora), E. M. Forster (autor de Passagem para a Índia e Howards End), Lytton Strachey (autor de Rainha Vitória) entre outros do meio artístico e principalmente literário inglês no início do século XX.
No ensaio A ficção moderna, Virginia Woolf traça um panorama da literatura produzida no seu tempo com base no passado.
“(…) Fielding fez um bom trabalho e Jane Austen ainda melhor, mas compare as oportunidades deles com as nossas!” (p. 87)
A grande autora inglesa, uma das maiores senão a maior escritora do século XX, ao elencar um grupo representativo entre seus pares, aposta em alguns nomes que não chegaram até nós, mas acerta ao mencionar H. G. Wells, embora sem simpatia pelo autor por “imperfeição cotidiana”. Já quanto a Thomas Hardy e Joseph Conrad, ela diz: “se mil dádivas lhes agradecemos, nossa gratidão incondicional reservamos”. (p. 88)
Mas ao que tudo indica, a sua grande aposta e o seu grande trunfo pela descoberta, em sociedade com o marido Leonard Woolf através da editora Hogarth Press, é sem dúvida o escritor irlandês James Joyce.
“(…) pretendemos definir aquilo que distingue a obra de vários jovens escritores dos quais James Joyce é o mais notável, da dos seus predecessores. Eles procuram se aproximar da vida e preservar com mais sinceridade e exatidão o que lhes interessa e comove, mesmo que, para fazê-lo, devam descartar a maior parte das convenções que os romancistas costumam seguir.” (p. 93)
No trecho a seguir, Virginia Woolf mostra a sua admiração por Joyce e curiosamente menciona a obra prima do autor antes de seu lançamento.
“Qualquer leitor de Retrato do artista quando jovem ou, obra que promete ser muito mais interessante, Ulisses, em vias de publicação na Little Review, arriscará uma teoria dessa natureza em relação às intenções de Joyce.” (p. 93)
Relacionando o gênio de James Joyce por subverter a literatura clássica a ficção científica de H. G. Wells, a autora é taxativa:
“Contrastando com aqueles a quem chamamos de materialistas, Joyce é espiritual; preocupa-se a todo custo em revelar as chispas dessa chama tão interna que irradia a sua mensagem pelo cérebro e, para preservá-la, ignora com total coragem o que lhe pareça fortuito, seja a probabilidade, a coerência ou qualquer desses marcos que, por gerações, vêm servindo para dar suporte à imaginação do leitor quando ele é incitado a fantasiar aquilo que não pode nem ver.” (p. 94)
Após explorar “o método que inibe o poder criativo” e “a culpa do método (…) que cria o que está fora de si e além”, Virginia Woolf chega à conclusão que “é um erro manter-se de fora examinando “métodos”.” (pp. 94-95)
“Qualquer método está correto, qualquer método é correto, se for capaz de expressar o que desejamos expressar, caso sejamos escritores; ou que nos aproxime da intenção do romancista, caso sejamos leitores.” (p. 95)
A autora compara Ulisses a Tristram Shandy de Laurence Sterne e segue tecendo loas ao conto Gusev de Tchekov e a literatura russa em especial.
“Mesmo as considerações mais elementares sobre a ficção inglesa moderna não podem abster-se de mencionar a influência russa, e, quando se fala dos russos, corre-se o risco de sentir que a escrita de qualquer ficção, que não a deles, é perda de tempo.” (p. 96)
O que acrescentar depois dessa constatação?
Edição lida:
WOOLF, Virginia, Segunda ou terça, tradução Taís Paulilo Blauth, 98 p., Rio de Janeiro: ed. Red Tapioca, 2019.