Seis poemas de Ana Reis
Ana, 24, é jornalista lesbofeminista e vegana, que se refugia na música e na escrita desde a adolescência. Seus poemas refletem sua vivência na cidade de São Paulo, o ecocídio estampado na metrópole, seus conflitos e reflexões sobre raça, sexualidade, pertencimento ou a falta de, e como tudo é político, mesmo o amor entre duas iguais.
Fiona
vivo o dia em atraso
mas você me inspirou
a acompanhar seus passos
a gente escuta Fiona Apple
ladies, ladies, ladies
destruídas por um homem
por dois, por quatro
pelo patriarcado
a alegria expirou
está apodrecida em algum canto
e continuamos na
melancolia
lembrando da infância
ferida
ela leva poesia por onde quer que passe
e inspira tantas outras como eu
que estão sendo chutadas por debaixo da mesa
ouvindo um “fique calada”
ou “seja menos amargurada”
hoje em dia
eu mal consigo terminar algum
poema e este, provavelmente, ficará
sem fim pois não consigo escolher palavras
ou definir as próximas horas
deste domingo ansioso
contudo está permitido
sentir angústia e apreço
no fundo do poço
a gente ouve Fiona Apple
a gente chora como o piano cru e destoado de seu álbum
e levanta para escrever poesia num ritmo auspicioso
Maria Madalena
eu ouço sua voz
suas emoções
passando pelo ar e tempo como a história
de maria madalena
arrepios
levantam do braço meus fios enquanto você
escreve sobre
o poder da mulher;
um relacionamento quebrado destruído
e enquanto desafia alguém a
te amar por completa
maria madalena
você é forte
você é válida
você é enorme
mesmo que pequena
maria madalena
não, não me importo
com a bíblia
o que é sagrado pra mim
é o poder da fêmea
é seu gozo em minha boca
para que nele eu me
banhe são nossos
sentimentos embrulhados num celofane
são milhares de olhos
nos observando
esperando que não sejamos
o suficiente
esperando que não nos
libertemos dessa agonia
infinda
que é este amor
entrelaçado com a fria solidão
e nossa falta de
comunicação
mary magdalene
você dança a tristeza
pra dentro e pra fora
rodeada de lama, fósforos
e querosene
*
sábado
homem grita no bar ao lado
está bravo com uma mulher
que responde aos berros
não sei sobre o que se trata
mas aposto que ela está certa
desço
caminho entre as calçadas tortas
piso nas pedrinhas de cascalho
quase tropeço
grama entre os espaços
cocô de cachorro espalhado
onde será construído um prédio
a demolição da natureza
da desordem que faz sentido
para cavar estes solos com torres de luxo onde
a branquitude classe média alta irá morar e
não terá mais aqui para o cachorro passear
juntamente com os insetos
os andantes
os ratos
onde o lixo é descartado
de forma inconsequente
é um sábado
o vento está gostoso
tiro a blusa
ficou frio
coloco-a novamente
chego em casa e quero silêncio
ela não para de falar
quer contar sobre seu dia
rir, brincar
eu já não tenho ânimo
quero uma folga das pessoas,
da vida
enquanto penso em escrever sob um pseudônimo
não quero ser reconhecida
não quero conversar
me deixe introspectiva
não quero transar
bata você sua siririca
os berros continuam na rua
vindos do bar
pelo menos eu estou no conforto
dos cobertores que precisam ser
lavados tenho minutos de paz
enquanto ouço a água do banho
já estou com sono
*
Don’t mess it up
não quero me prolongar
e repetir
as mesmas noias ou
padrões de comportamento tóxicos
nos quais a minha vida amorosa toda
residi
sou sua sexta
já viveu uma vida inteira
e eu estou na metade
já tive muitas decepções
incompletas
muitos amores eternos
de meses
traumas que duraram dois anos para serem curados
traumas que eu ainda lembro
o cheiro
como seguir em frente se tudo
me remete àquela dor descomunal?
aquele aperto no peito
durante um ataque de pânico
aqueles olhos frios e mãos que não
me tocavam mais?
pernas que a levaram até a porta
desestabilizando-me toda
deixando-me absorta
na promessa de não me entregar
a alguém
jamais
aprendi a não sufocar tanto
a contar os pequenos ganhos
ver beleza na podridão que evito
ao caminhar entre os labirintos escuros
entre toques do inimigo e abusos
que marcaram minha pele
sua sexta
minha terceira
fico repetindo que você não gostou do meu poema
não sei se quero que você leia
pois não quero ser vista com olhos
que podem se tornar cruéis
não quero lembrar do que escrevi
naqueles sessenta papéis
números martelam na minha cabeça
toques, gestos e pessoas
lembranças
gatilhos e tentativas de suicídio
martelam
martelam
acreditar em algo é cada vez mais difícil
martelam
meus vínculos pelos dedos esfarelam
*
Sapatão é no feminino
ô, amiga
são tão conturbados nossos papos
nossas ideologias e nossos percalços
espero que você não se esqueça
nunca
dessa chama lavanda
dentro de você
essa chama é fúria
é ameaça
é libertação
e também solidão
apesar de achar-me liberta
continuam aqui
as amarras que eu mesma fiz
dentro de mim
eu não sei
essas são difíceis de partir
essas nunca querem sair
nossa ideologia fervilha
gostaria que você visse
o seu valor
e não se prendesse em amarras
que você mesma criou
com medo de ficar sozinha
é contraditório?
se gabar que não nos deitamos para o patriarcado
enquanto estamos presas em nós mesmas?
você se sente assim ou é loucura
da minha cabeça?
me sinto presa e livre
livre afogando no auto-ódio
presa e cantando as músicas aleatórias
de um antigo repertório
ô, amiga
também sou muito pessimista
já decidi que vou morrer sozinha
e sempre que lésbicas como você existirem
seremos a esperança
do movimento feminista