Seis poemas de Armando Martinelli
Armando Martinelli (@armando_martinelli_nt) é jornalista, mestre em divulgação científica e cultural. Autor do livro Recital das Reticências (2018, editora Urutau), também tem poesias e contos publicados em algumas revistas e coletâneas digitais.
Crédito da foto: Raphaela Fonseca.
O livro está em pré-venda virtual no www.benfeitoria.com\aluz.
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Os cães
(Para Samba e Lótus)
Era para ser um passeio corriqueiro com os cães
até avistar
estacionado sobre a calçada
o veículo decorado com as bandeiras do Brasil e dos EUA
procurou pelo infrator
homem de camisa verde e amarela dentro da casa de assados
pensou em colocar fogo na bandeira estadunidense
não tinha fósforos ou isqueiro
teve medo da chama se alastrar e explodir o automóvel
pensou em riscar a lataria
chegou a tirar a chave do bolso
recuou ante possível alarme
pensou em disparar algum xingamento
conclamar consciência de classe
desistiu pela provável incompreensão
quando já se julgava derrotado
seus cães deram dois belos jatos de mijo
nas rodas do carro.
*
Mancha
Não é só o cheiro do sangue
alarme a pousar no meio da noite
há sons que não se dissipam
oriundos de supostos elogios
havia um não
um tratado proposto
mesmo com o nevoeiro etílico
um olho na janela vê o helicóptero da polícia
luzes altas a procurar bandidos na comunidade
um olho pelo espelho enxerga a fera
uiva como se pisasse em solo lunar
no corpo do outro se contorce
o ato dura pouco
suficiente para deixar marcas
lições anotadas em versos matinais
redecora a casa
pinta todas as paredes
menos aquela mancha
ao lado da cama
vermelha
*
Animal exótico
Instável como o tempo na ilha
deixa as palavras soltas na maré
ao contrário das vestimentas e gestos
uniformizados
durante a troca de presentes
observa o casal de pássaros pela janela
durante a sessão de fotografias
ouve os grilos em dueto com o Radiohead
a placa diz proibido animais na área da piscina
*
Fogaréu
O sonho que se vê distante não é o que se vê agora
atravessa a rua de costas
o relatório das conformidades precisa chegar até às 14h30
pinta o cenário com os dedos
faíscas a contornarem segredos
aponta o camelo a caminho do sol
perfeitamente natural
II
Resgata o retrato de um quarto escuro
a pureza inventa o espelho
a lágrima decora a memória
acende o olhar na chama
deixa arder nas entrelinhas
cantarola um clássico de infância
celebra o sangue derramado
sente queimar por dentro
ajeita o chapéu sem medo
saúda a fagulha derradeira
III
Teorias explodem na nuvem ensandecida
passeio da língua em monumentos rasgados
arbustos bailarinos invadem a madrugada
moscas tragadas no chão de cera
IV
Fareja rabiscos
rastreia migalhas
assovia a velha oração
busca a coragem pioneira
V
Beija a outra dimensão
embarca na penumbra
entre olhares embaçados
cabelos desgrenhados
casacos coloridos
emerge na água cristalina
flutua até virar braço de mar
na simples paisagem se ajeita
na pura vontade se integra
rebola sem temer.
*
No lado esquerdo do peito
Dá para sentir pelas ondas
as cordas esquentam com o tempo
não te peço o bordão
só não deixe o sonho descer a ladeira
perder o fio da memória
vamos andar de jangada
navegar no suor a noite inteira
onde a vista alcança é pouco
só nós captamos a atmosfera
os pequenos rincões da relva
sem espaço para metas
não te peço decisão
pousar a tinta em rascunhos vencidos
só não deixe assentar a poeira
acenar ao desgosto nem percebido
não te peço confirmação
assertivas rasteiras
bandeira exposta na claridade
mar de rochedos na parede
a fotografia do momento
agora, já, urgente
não te peço qualquer ação
ouça os sinais que invento
e neles desperte sem pressa
feito bicho-preguiça
senhor do exato movimento
cansados sim, cansados demais
da apatia
da ausência de humanidade
não te peço perdão
sinfonia da repetida pena
abra os olhos e dance
guarde as salivas para amanhã
a queda é questão de instante
do alto da ilusão tudo pode ser
vermelho como o sol
distante da solidão
domingo no futuro nublado
não te peço informação
descargas diárias em abundância
o mundo precisa de cambalhota
cordel com lamparinas
velas e cirandas
cartazes feitos de esperança
somos testemunhas da inércia
da saudade dos abraços
somos estrelas perdidas
caso não sinta o arrepio do tambor
tenha calma
paciência entre os atos
não te peço compreensão
coloque o silêncio no lugar
no lado esquerdo do peito
longe da indiferença
com rimas, coragem e
coração.
*
Tudo igual
Na entrada de um pequeno condomínio
com casinhas, garagens e fachadas iguais
um único terreno vazio
nele um pé de mamão infiltrado no muro
permaneceu lá por dois dias