Seis poemas de Ib Paulo Araujo
Ib Paulo Araujo – nascido em Alagoas, escreve sobre suas vivências nas diversas paisagens locais, que misturam a urbanidade, em constante ascensão e queda, com a natureza, em seu fluxo ininterrupto. Como um pássaro pescador, observa o mundo como se suspenso no ar em busca de um alvo. Então, mergulha em águas tão rasas quanto o chão em traz àsvezes em seu bico de caneta algum peixe, anfíbio ou simplesmente nada. Ib é mestre em Estudos Literários pela Universidade de Alagoas e atua como professor de ensino básico das disciplinas de linguagens.
***
sobe, desce, pingo
(i)ntrodução
sobe
desce
e pingo
um i minúsculo
sobre o papel
pela primeira vez:
esse é meu
ponto de partida
sobe
desce
e pingo
um eu minúsculo
e ainda sem nome
que festeja as pequenas coisas
sobe
desce
e pingo
repetidas vezes
até atingir uma sensação de clímax
sobe
desce
e pingo
o ritmo da chuva
pinga
pingos e
chove
forte sobre a casa destelhada
sobre móveis
e colchão
sobe
desce
e pingo
a memória do mamute,
aquele que carrega a premissa
de ser ou não ser elefante
sobe
desce
e pingo
um martim pescador grande que pousa
sobre uma estaca de pau
mirando em sonhos
em forma de
peixes e outras vidas submersas
que os captura com seu bico de caneta azul
em mergulhos profundos
em rios mares e lagunas
de águas muitas vezes turvas
*
a chamada
na minha canção eu sou um solo
coberto de capim úmido
sobre mim meus cavalos
batem seus cascos
incessantemente pois
há uma cerca de arame
farpado que os prende
Mas é na ânsia de bater crina
campo a fora
que minhas cavalas
arrombam o cercado
e relincham minha canção
ao sentir o vento da liberdade
quebrando-lhe os dentes
deliciosamente
guiando-as à chamada
que lhes aparece ao horizonte
como um grande farol
*
receita
featuring Robert Eggers
você olha para os comprimidos
na palma da mão
e pensa num
possível sermão
das bruxas mais velhas
com seus chás e poções
Elas que se orgulhavam
de não terem cedido
a outros diabos
para viverem deliciosamente.
black philip a mim
ofereceu outras coisas
para assim viver
receita:
uma pílula azul
e algumas outras
para a cabeça
então sente-os descer goela abaixo,
como um vaso sanitário conformado
que criou braços para alcançar o botão
de descarga em si mesmo.
*
A Bruxa desse poema
i
a bruxa desse poema
sobrevoa sua cidade em chamas
montada num aspirador
de pó roubado
E só Deus sabe como
ela consegue voar
tão longe de uma tomada
ii
a bruxa desse poema
ama seus caçadores
e lobisomens
em cabanas de papelão
no meio da floresta escura
na vida real, a bruxa
é queimada viva
na fogueira de São João
com papelão e tudo
pelos mesmos que a amam
sob o olhar da escuridão.
iii
a bruxa desse poema
anualmente se une às outras
na rua treze
e lá, como num conto de fadas
girado ao contrário,
beija apaixonadamente
branca de neve
que é a maçã dos seus olhos e lábios
*
Meninos como eu
featuring Rouge
Meninos como eu
São mais fascinados pela bruxa
que amedrontados por ela.
Meninos como eu entendem
Dos truques
Magias
Poções
e identificam seu
Seu terceiro olho
Que muitas vezes pode ser uma
marca de nascença na perna
Ou então a marca da
boba da peste
em pleno rosto
que estilosamente
cobre com seu penteado,
ressignificando a desgraça
e fazendo dela
Um canal para a vida invisível
Um canal para a alegria
das pequenas coisas
Para a língua incompreensível
dos chamados de loucos
e possuídos pelo ritmo ragatanga
*
(i)ntrodução ii
A minha forma teve muitas tesouradas ao longo do tempo
O que resta hoje é resultado do podar alheio e violento.
Agora, sou jardineiro de mim, mesmo que com pouco talento;
somente tornado de fogo, tremor de terra ou chuva de vento
podem me arrancar folhas ou raízes, ainda que presas ao chão de cimento.
Hoje me dou conta de que tive tudo na vida menos um jardineiro:
Tive uma mãe psicóloga nata, segundo ela própria;
Uma avó parteira e contadora de histórias;
Uma tia-avó, ex-macumbeira convertida ao evangelho;
Uma tia costureira e fã de filmes de terror;
Um tia merendeira que me chamava de amor;
Uma tia professora, cartomante e agente espiritual;
Uma prima da voz grossa e fofa como uma colcha de chenille;
Educação sexual com base em pornografia, instruídas pelo o único tio;
Um irmão mágico que consertava tudo dentro de casa
e que tentou me ensinar a voar de bicicleta, como uma pipa no ar;
Por fim, um pai não-camarada, um morto-vivo,
que se esconde em minhas veias como um fantasma de sangue.
Tenho uma flor de cada desses “jardineiros”,
porém hoje escolho quais delas que ficam e aquelas que vão
Não quero mais flores daninhas. Quero apenas as flores de mim, mesmo que falsas, de plástico e papel crepom. Árvore híbrida que sou, várias espécies de mim brotarão
e quando eu der frutos, salada de fruta pronta, jambo, brinco de viúva e fruta-pão
aos sacos e colheradas, de mim, levarão, tudo de graça e ao alcance da mão.