Seis poemas de Lucas de Matos
Lucas de Matos é comunicador e poeta soteropolitano. Atua na área da poesia escrita e falada desde 2014, por meio da produção de saraus. Produziu o Sarau Arte Livre (2014-2018), Sarau Quartas Poéticas (2019) e Sarau do Benin (2021). Recitou nas duas edições do programa Conversa Preta (2020/21 – TV Bahia, Rede Globo), e integra a Antologia Terra (2021) com o poema ‘Falta’. Produz conteúdo literário, vídeo-poesia, e é o idealizador do Projeto Quartas Poéticas, disponível em seu canal oficial do Youtube.
Foto: Grisel Sarich
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UMA SOBRE A SAUDADE
Aposto que a saudade ainda te toma de relance
Não é minha vaidade, mas marquei-me no teu corpo
Marquei-me na tua mente
No todo do seu gozo
Impetuoso
Intermitente.
Aposto que a saudade ainda te dá umas rasteiras
Te deixa sem eira, nem eixo
Ou qualquer outro norte
E nesses dias de desespero você toma um porre:
Aposto que a saudade ainda te engole.
Aposto que a saudade te enerva, te enlouquece
E quanto mais você a desmerece
Ela te envolve, ela cresce.
Ela quer misturar o meu nome
Ao seu nome
Aposto que a saudade ainda te come.
E nos dias em que a saudade traz-lhe à memória
O beijo quente, o abraço, o amasso
Você faz da saudade os seus espasmos
Ou procura-me noutros braços.
Então se desespera em seu próprio vácuo.
Pois nem a saudade
Nem ninguém
Faz como eu faço.
*
AVESSO
ama-me
porque a realidade é fugidia
é ladra
e me tira a flor da poesia
que irrompe no meio-fio da vida
inteiriço
áspero
ama-me
para que me seja dada
a possibilidade de levitar pela casa
quando os cacos de vidro
que arremessei no passado
permanecem no chão
ávidos em me ferir
e sou eu quem limpa o sangue
eu quem costura a carne
ama-me
verdadeiro, absoluto
apesar de mim, apesar de tudo
e compreenda-me quando eu
confiante
resolvo expor o meu avesso
ama-me
pedido que reitero
no espelho
*
LARANJA
Ao descascar uma laranja
Comecei a pensar num amor
Que como um abraço apertado
Se desfez num momento
Como uma casca de desfaz de uma laranja
Como um laço de desfaz de um presente
Como a lua se desfaz de uma noite
E no momento pensei que não fosse amor
Talvez uma paixão, mais fugidia
Mas tão intensa como um abraço apertado
Que se desfez num instante
Mas deixou o cheiro no corpo
Deixou o arrepio na pele
Deixou o gosto da saudade tão ácida
Quanto a laranja que chorava
Ao separar-se da casca
E no azedume que grassa
Pensei que não fosse paixão
Talvez uma desilusão, mais severa
Triste como um abraço desfeito
Na incompletude que amarga
De um pássaro sem asas
De uma flor sem cheiro
De uma laranja sem casca
E ao terminar o descasque, nada senti
Vi que não era desilusão, mas simplesmente a vida
Isto daqui:
A rapidez que deixa rastros
E só faz o que te apraz
Como quem ama e desama
Como quem ri e chora
Como quem rasga um poema
Como quem descasca uma laranja.
*
ORNITORRINCO
Tudo que eu gosto me transforma
Transmuta a minha forma noutras tantas
Sou árvore trans milenar,
Que exubera todas as plantas
Tenho gestos dos que admiro
E das formas falas visões
Eu me inspiro
Eu me aproprio
Minha poesia é bricolagem
Da palavra lida
Da música impregnada
Dos horrores assistidos
E dos prazeres contemplados
Em gozos potenciais, sublimados
Sou este misto
Este bicho ornitorrinco
Esta sopa antropofágica
Que você agora prova
Porventura
Se me tomas
Se me aprovas
Eis-me agora
Parte informe
Da tua forma
*
FALTA
Falta-me a pisada delicada sobre a terra
Como quem respeita o menor grânulo
Falta-me abdicar do cetro e do trono
Da soberania do reino humano
Falta-me conhecer a fundo
O significado da minha dita humanidade
Falta-me a ebriedade da brisa
Daquela onda que bate, essencialista
Falta-me aprender a sensualismo da água
Mesmo revolta ela atrai, mesmo calma
Falta-me a o gingado dos seres menores
Que constroem, resilientes, seus alicerces
Falta-me a verdadeira prece, do silêncio
A apreciação do bailado intangível do vento
Falta-me a inteligência total dos meus sentidos
Alinhados aos grandes Elementos
Falta-me paciência em meio ao descontentamento profundo
Última moda em meu mundo
Falta-me, sobretudo, saber se o mundo
De fato me pertence
Ou se me falta
*
CONVERSA PRETA
Ei… A gente pode conversar?
Não apenas sobre o lugar de fala
Mas sobre a possibilidade de falar
Venho contar de mim, de nós
Da lonjura dos passos
Da tessitura dos crespos
Das vozes de antepassados
Quilombos e reinos
Com o verso desembaço o vidro da História
O mito da escória, a prosa de escárnio
E começo as reparações seculares
Desde quando as escravidões
Foram batizadas de descobrimento
Salvação, desenvolvimento
Se não constam nas atas e escrituras oficiais
Foram contadas nas rodas,
Aos pés das fogueiras e baobás
Nossa cultura de oralidade
É de encantamento
Preservação do fato e do pensamento
Da ginga na roda de capoeira
E do gingado existencial para manter a alma altiva
Mesmo sob o ricochetear do estrangeiro
Do escravagista
Do estranho parasita
Venho te contar da rasteira ancestral
A golpear a antiga chaga
Que nos desumaniza
Venho te narrar outras verdades sobre os inventos
Da tecnologia, da música, da medicina,
E de tantas riquezas que tem as digitais da negrada por cima
Com a rima, enegreço
Com o brilho da melanina, esclareço
Peço licença aos mais velhos e aos mais novos
Para versejar a nossa história
Com respeito e com apreço
Ah, senta que a conversa é longa
É uma troca, um tratado
É um papo sem treta
Tome nota que a conversa é boa
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