Seis poemas de Manoela Cracel
Manoela Cracel (São Paulo, 1975). “Tenho formação em Direito e sou apaixonada por literatura e cinema. O desejo de começar a escrever surgiu há alguns anos. Fiz algumas oficinas de escrita – experiência muito válida – e peguei gosto pela coisa. Sinto que estou num incessante processo de formação. E sobre a poesia, uma necessidade, um modo de vida”.
***
segunda pele
aquela camisa velha
de dez mil instantes atrás
rota, puída, molinha
fininha e fresca
manchada de alvejante
inchada de passado
embebida de lembrança
quase uma autômata
habituada às formas de
como se anda
como se come
como se lava
como se deita
como se sonha
como se ama
acostumada aos seus gostos
e manias
dependente do suor
do dia a dia
revelou-se de tal maneira
que foi preciso
um especialista
pra desgrudá-la da
pele já ardida e ferida e
alertá-la de sua condição de matéria inerte e
desprovida de vida
É uma pena
Era a mais adorada camisa velha
que você tinha
*
pé-de-mãe
Te levam pra qualquer lugar
por eles mesmos
Falou a criança
dos pés da mãe
O pic-pac das chinelas
A mais linda canção
Pic
Cheiro de frutas
Pac
Cabelos escovados
Pic
Voz ao telefone
Pac
Mãos na massa de torta
Pic
Vestido aerado de flores
Pac
Afago no cocuruto
Ritmo cifrado de afeto
Onda cravada no corpo
Espírito adocicado
Mecanismo evocado
nas noites solitárias de sono
*
fotografia
Sentada na janela
A vista pro terraço da vizinha
piscina de fibra azul
dois por um
o menininho se esbaldando
em água fresca e doce
profusão de pernas e braços
folia pra todos os lados
a água
o céu
o bafo
a janela
o suor
a gota
a testa
o olho
a bochecha
a boca
o queixo
parapeito
tsssssssss
lembrança-fumaça de um dia
parado e quente
*
Só com Dostoievski
O sonho dela é um dia
só um dia
um dia inteirinho sem compromisso
sem passado, futuro, pensamento, culpa, apatia
estresse, alvoroço, notebook, celular, televisão, notícia
supermercado, carro, ônibus, ambulância, calçada, poeira, asfixia
panela, arroz, sal, alho, óleo, ovo, carne, fogo, pressão, cansaço, rotina.
Um dia inteirinho só pra ficar lendo Os Irmãos Karamazov
*
O sumiço do balde verde
Caiu no buraco negro!
Na faxina, o surto
esfrega-esfrega
varre-varre
vai-e-vem
suor
molejo
ritmo
pronto
metáforas pra todo lado
sujeira e limpeza
ação e ócio
micro e macro
poeira, pano, papel
caneta, záz!
cresceu o poema
e o balde descansando
no parapeito da janela
um dia de vento
décimo andar
só notou
uma semana depois
o sumiço do balde verde
*
lu(n)a
tava assim, dividida
metade tédio
cabelos presos
moletom velho
música relaxante
no computador
fone no ouvido
dedos no teclado
tamborilando um vai e vem
de letras e símbolos desconexos
metade blues
adeus ao fone
som na caixa
cabelos soltos
pan, panam, panam, panananam, panam, panam
coração elétrico
braços serpentes
pés obedientes
ao traçado cadenciado da música
corpo, ar, ritmo
fusão atômica
nasceu a poesia