Seis poemas de Mírian Freitas
Mírian Freitas, reside em Juiz de Fora, doutora em Estudos de literatura (UFF), lecionou em Massachusetts, EUA, atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Autora de Intimidade vasculhada (contos – Editora 7 Letras/Imprimatur), Exílios naufrágios e outras passagens (poesia – Editora Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (ensaio – no prelo). É autora e organizadora em antologias; foi premiada pela criação poética pelo Casino Lisboa – Portugal; e possui textos publicados em revistas como Cult, CP Literatura (Editora Escala), blogs e sites de literatura. Instagram: @mfreitasbrazilmg. Vídeo poemas em: https://youtu.be/IrjNsZVibTw
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Retrato de um poeta vietnamita
(A Ocean Vuong)
Seu corpo de menino magricela é poesia.
É uma inesperada poesia de instantes:
ranhuras e intermitência.
Os olhos rasgados como se envergados no deserto
pedem água porque têm sede.
Sede de palavras que cicatrizem as metáforas
do mar, da mãe, do exílio.
Metáforas estas, que sangram aos poucos na falência do espírito
na desordem multiplicada de emoções difusas
sem nome.
Seus sovacos são tão profundos como duas covas de guardar
sentimentos.
A infância permanece intacta (ainda) nos seus ossos
e na sua pele escurecida.
Memórias de Saigon num rio de fumaça
estão pregadas às paredes de sua casa íntima.
Um pai sem rosto tatuado na carne híbrida.
Uma avó com o passado e as guerras nos cabelos.
Uma mãe de chinelos, adormecida pra sempre numa cama de bambu.
Um nome para nunca mais esquecer do mar:
– Ocean,
ninguém abandonará suas mãos em nenhum instante.
Da sua vidraça em Northampton, a vida passa enquadrada por uma janela:
molduras da neve e das árvores cegas pelo inverno.
No centro de seu coração
reside um bibelô de origami
à meia luz de um crepúsculo.
O vestígio de suas origens asiáticas aprofunda-se
como raízes na terra da promessa.
Pelo olfato materno, a luz que foi dada a você tem o cheiro imortal de crisântemos e de sombras frias.
Lendo Sylvia Plath
Arrasto com os pés a velha cadeira de madeira
para sentar meu cansaço
esticar os calcanhares ressecados
e ler os versos esquizofrênicos
de Sylvia.
Escuto nas palavras o incansável som de cascos
crânio branco comido por ervas daninhas.
Ouço as vertigens inesperadas de uma mulher
ao gritos
à beira de um penhasco.
Escurece nas solas dos pés
a tinta da madeira velha da cadeira
penetra a indecisão. Frutos e farpas
anéis de marfim, dentes escovados
na boca estranha da mulher.
Um vento e um raio nunca estão no mesmo lugar.
Os interstícios do tempo aniquilam ponteiros, buscam
rugas incessantes
Calvície, cataratas, diabetes
É o fim. Os fins escravizam, têm sede.
Matam no golpe os músculos involuntários
do coração
arrebatam no tempo a fome cansada de pedir.
Pedir no leito um copo d’água, um cacho de uvas,
o óleo santo para as dores nas pernas.
Ninguém escuta a voz que pede em silêncio.
O cotidiano continua com covas nos olhos.
Para o jantar,
Sylvia descama os peixes, corta
o primeiro e o segundo com a faca cega,
o terceiro ainda respira, acaba de sair da água.
O furo vermelho do anzol no céu da boca
e os olhos do animal dizem súplica.
[Ela] arranca-lhe as guelras com as unhas
impedindo-lhe o último suspiro.
Agora jazem suas barbatanas.
Na tigela, as escamas, as guelras e a culpa
nas curvas dos olhos da mulher.
Fecho os olhos e ouço palavras.
As páginas ficaram presas ao chão.
Debruço os cabelos sobre as vestes
de dormir,
vasilhas sujas do almoço sobre a pia
a euforia das moscas
respiro (ainda) o cheiro de alho e cebola pela casa.
(Os versos: o incansável som de cascos/Crânio branco comido por ervas daninhas foram extraídos do poema “Palavra”, p. 89, de Sylvia Plath, do livro Poemas: Iluminuras, 2005).
O pensador / Auguste Rodin
Pense devagar no livre arbítrio:
vida ou morte?
Os bichos pensam e se libertam,
distraem-se na essência fascinante da curta existência.
Pense até atingir a linha nítida da manhã
teu rosto não arde mais em nenhum nome
nenhuma voz saliente das trevas
nenhuma paixão.
Só pense.
As águas falarão depois do gesto mudo
os esboços geométricos no teu corpo flutuante
transitam formas inomináveis.
Assusta-me teu vulto pensante, depois
de hoje, as embarcações levam os pensamentos
e o teu nome
coberto de dúvidas e medo.
Peste
Nos tempos da peste
pés andam cabisbaixos
choram ao último gesto de trégua,
lamentam palavras ditas no rádio:
– Apocalipse e morte.
Estes muros de pedra, de repente
se movem pelos roteiros do silêncio,
há verbos secretos entre as frestas azuladas
dos meus braços.
(E até quando estes braços?)
A peste não tem nome.
Derrete com seu maçarico de fogo
os cabelos das crianças, das mulheres, dos homens,
das avós.
Põe doentes os cavalos noturnos
os insetos invisíveis
a paixão de um humano pela água impura.
Que seja breve seu passo aqui,
na terra e entre nuvens.
Que a memória passe
perdoe esse tempo de bestas e feras
e se transforme em halo de leveza e luz.
Amor de árvores
As árvores, pilares de um sonho sobre meu rosto?
Torres que caminham comigo, largas, aquelas mais altas
carregam no tronco a sina da castidade antiga.
Os galhos quase nada definidos seguem os ventos
reascendem o humor do dia
vivificam os lábios e as retinas.
No caule, guardam paciências e tonéis de esperança.
Nenhum orgulho ressuscitado ainda.
Nada sei sobre o esquecimento destes terraços
aéreos
que formam esculturas raras
expandindo-se sobre telhados
calçadas e sobre as águas
onde mora um barco de asas
que é o meu esconderijo.
Caladas, deitam em solidão sobre o meu ombro.
Um quase nada de luz sobressalta a copa verde no alto.
Ingênuas, levantam os braços em renúncias:
-cansaram-se do hálito das foices e do fogo.
Num gesto de súplica, tocam-me pelas vestes
do afeto:
neste instante em que uns espaços de luz rompem a treva
um amor invisível rouba meu corpo, e sob esta penugem verde
de folhas e frutos
é que meu rosto floresce.
Em Marblehead
O mar sopra flores de sal
peixes submersos irradiam palavras
na paisagem da água.
Não era aqui nem ali
os acenos longos das mãos.
Fora o oceano, o sol também, astro luminoso,
reflete-se imenso nas retinas das gaivotas.
Barcos driblando o vento,
nada continua esquecido ou mudo.
Dentro do peito, a notícia inesperada
do grito que alcança a boca
num fôlego ácido
de derreter nuvens
de alçar a lágrima na ponta do nariz.
Era uma vez uma cabeleira loira ao vento.