Seis poemas de Mylena Nogueira
Meu nome é Mylena Nogueira, tenho 23 anos, sou do Cerrado, nascida em Taguatinga, graduanda em Ciências Ambientais e poeta (quando as mãos querem, a língua precisa e os olhos caçam). Apaixonada pela ecologia dos ecossistemas, da vida, das palavras, da seiva, do sangue e das paixões, e é mais ou menos um tanto dessas coisas que surgem na minha escrita. Escrevo porque preciso andar descalça.
***
Pousei o meu corpo diante da sua boca
acariciando promessas como são acariciados filhotes de bichos mansos.
teu ombro de fora como farol num breu de mar ancorado em ancas,
meu corpo sutil, lento e lânguido lambendo seus rastros,
o lume nas mãos, velas acesas
guiando os cachos dos teus fios por entre os trechos dos meus pêlos ásperos,
intimidade de silêncios fêmeas e palavras de via matris,
rogai por nós absolutos sem margem.
Seus olhos abertos amarelos como a luz de um quarto de pau a pique
confabulando profecias de íris,
vermelha recomposição de nossos corpos gastos,
umidades passadas secando no vento manso ao final dos tempos relâmpagos,
teu dom espiritual
[…]
Mas digo,
para além do desespero daquela mulher de luto
acendendo velas na procissão de uma cidade do meu interior,
me lembrei da caça.
a caça como horizonte de onde Ártemis me acena
de peito sem bojo a caminho da guerra.
Hortelã no café pra incitar o hálito da coragem,
o hábito da força que o seu calcanhar cultiva,
movimentos sem fim daquela mulher em festa
acendendo carnavais numa cidade do meu interior.
me lembrei do alívio pós combate, da doçura de um caminho impresso no dedo mindinho,
contando a idade nas linhas das mãos que enxugam as horas
como são enxugadas lágrimas de bichos ferozes.
Pousei o meu corpo diante do Tempo
sem saber o tamanho de sua fome,
tudo sem margem, mas com uma alegoria palpável.
me veio coragem de encarar o que não se vê,
que os olhos invisíveis são ainda mais propensos a enxergarem tudo,
pupila de fundo aceso, muito fundo,
meu dom espiritual.
Pousei o meu corpo na terra pra lembrar:
Benditos são os frutos do meu ventre quando tenho fé de afirmar que existo
em corpo e alívio,
em guerra e doçura,
em bicho e espírito. amém.
*
Frágil
meu peito breu.
Finjo ser outra pessoa pra falar aquilo
que minha pessoa quer dizer e
sei que você sabe.
Pelo teu assombro, sei que
sabes de mim;
de mim e do mundo.
Cálida
minha veia neutra
cor.
Corro pra ser outra pessoa,
que a inércia já me provou que povoar espaço estático
é como furadeira no prego da parede,
e aí é como se eu fosse esse prego:
agonia de quem vai fundo sem sair do lugar,
a parede seriam as minhas constatações,
firmes e todos os dias com uma cor diferente.
Te encaro de frente, mas você não me vê,
e nem poderia, visto que quando te assumo
você vira imaginação inalcançável de amor
ou qualquer outra coisa de nome frágil, meu peito breu
- é mais seu aquilo que não te digo, do que todas as palavras que já despejei sobre você, sua cama e seu cachorro
quando ele foi embora eu chorei pelo fim do nosso amor,
pelo fim do passeio ao final da tarde,
pelos fins das tardes, e que afinal, quais as suas finalidades?
O choro é só pra abafar a ânsia de furar concreto pra molhar os pés em aquíferos;
choro pelo fim dos aquíferos
e por não saber os motivos pelos quais você anda chorando.
Cálida minha veia neutra.
Finjo ser o que não sou pra ver se chego mais perto de ser o que
eu queria
que você soubesse os motivos pelos quais eu tenho chorado.
ontem mesmo me aconteceu algo que você saberia bem o que me dizer
quando em arrepio eu te contasse que me enrolei nas horas e virei ponteiro sem sentido,
sei que você me diria que tempo é o momento exato em que o pneu toca o asfalto quente, que gira gira e depois passa (mas antes queima),
e que existência é músculo a ser exercitado.
Eu tento, sempre que posso. Todo dia eu tento, mas às vezes não. O que diria o seu cachorro? sei que ele me entenderia, porque ele sempre entendia sem eu precisar dizer,
as vezes nem você sabia dos choros que já compartilhei com ele enquanto você esteve fora,
as viagens que foram, pra mim, o treinamento da sua ausência,
Às vezes nem você sabia.
Hoje finjo ser outra pessoa, e escrevo pra alguém que viveu um amor muito parecido com o nosso,
que teve um cachorro muito parecido com o seu,
que teve fim como tudo que um dia começa,
escrevo porque não posso furar concreto, e se pudesse,
não queria ser merda nenhuma de prego,
queria ser a mão a controlar a furadeira
ou o pé a se afundar em aquíferos escondidos debaixo dessa rua
por onde uma lembrança muito parecida com o nossa passeia com sua história ainda longe de ser como aquela que me conto todos os dias
e que tem um nome muito parecido com o seu.
Congelo em pose movimentada,
se ainda coubesse, te diria que muito entendi depois de muito desentender
Enrolada que sou, e sabes bem que quando não te digo nada é quando há a maior ânsia de te dizer alguma coisa.
Saiba que eu tenho chorado, sempre que posso. Todo dia eu choro, mas às vezes não. Você está embutido em mim tal qual prego de parede segurando uma estante de livros que eu queria muito que você lesse,
Sei de ti mais do que pensas, e te guardo num livro de mistério que sei que te prenderia.
Nunca te direi das horas que fico parada olhando essa parede, boquiaberta
frágil, finjo, cálida, cor, neutra de sentido, choro, congelo, escrevo, furo concreto,
te esqueço, te lembro, não faço, corro
e recorro à lua para descobrir que amor é coisa que também míngua.
O amor, meu bem, é coisa que também míngua.
*
Te olho como quem vê um vulcão diante de si
paixão espanto quente
carinho de magma, o centro da Terra.
Teus cílios e silicatos e vapor d’água
e o amor é o que vem depois
da erupção nos cantos das suas verdades,
nos vértices da sua cintura
choque de placas tectônicas, minha perna com a sua
Vontades do centro da Terra na ponta dos dedos
e o amor é o que vem depois
em forma de lava, na ponta da língua
Louvores que nascem junto da ânsia
de estender a minha rede no espaço entre as suas orelhas.
Te cheiro como quem fareja um vulcão,
quase um monitoramento sísmico quase um abalo cósmico
e o amor é o que vem depois
da explosão,
a vontade de deitar sobre seu peito,
correr descalça sobre combustíveis
e é como botar o pé em brasa sem que ele queime
gozar em altas temperaturas estando longe do sol
perto do que sai da sua boca,
fumaça, palavra, saliva, pacto com a vida
te olho como quem vê em erupção
Segredos do centro da Terra e ela e ela e ela
*
seu amor que dorme pouco,
quadris femininos que muito,
mãos de talhar o corpo, ventre duplo em puro tanto
quis chorar enquanto te amava, um choro de vela contita
um choro de vela que cria, um choro de mão que alumia
quis chorar através dos pêlos que molham aquela coisa não dita
aquelas coisas que crescem na superfície de toda mulher
mãos em reflexo, ciscando do avesso
o nosso amor que dorme pouco
mãos de quadris repouso, sede que nunca sacia
aquelas coisas que jorram do interior de toda mulher
que fundo que entra que mora,
águas de ventre-nascente
cor cacarejo colossenses
mãos de supor o tempo, tempo que dorme pouco
passarinho que esquece que cansa e voa feito desejo no céu da sua boca
esse céu que infinita sobre a língua de toda mulher
que pra baixo o oceano é saliva
água mar que dorme pouco
mancha de água salina ondulando do seu quadril pro meu
“corpo de mãe que foi filha”
corpo de mulher tem parede chão e telha
e a minha casa não dorme, e a minha porta não fecha
mãos de quadris colosso, fonte que nunca cessa
água subterrânea,
esse aquífero que insiste no interior de toda mulher
à espera de qualquer falha geológica na superfície da pele
pra encharcar espaços vazios da terra,
qualquer fissura (qualquer uma) é chance de cachoeira em solo de ventre,
a carência hídrica não ameaça olhos que choram, nem colos que sangram.
espaços vazios não dormem na casa de uma mulher.
*
a ordem de transmutação do tempo
quem disse que não ia doer?
e dói mesmo
aos dias basta a sedução da graça meu conforto
confronto de facas quase
que eu não saio viva dessa mas aí outra
paixão mais
perguntas menos respostas
deita comigo e diz que o crescimento tá no forno
a menina arde mas é a mulher quem
queima passado, assa experiências no fogão
à gás
por graça pôr fogo
entrelaça as pernas e me diz que o caminho tá no pé
e na maior parte do tempo achando que
existir é grave, olha o peso da atmosfera terrestre
existir é grave mesmo quando arde, principalmente
quando arde e eu quero me despir pro sol
e o sangue é quase clorofítico
a ordem de transmutação do tempo
quem disse que não ia decompor?
e apodrece mesmo
aos dias basta a podridão da pele, igual terra tem poro
lembra? é claro que seria frágil um corpo que todo furado
ainda precisa aguentar a densidade atmosférica,
existir é gravidade, mesmo
tudo sendo tão breve ainda bem, ainda mal
o tempo deve ser extremamente solitário
igual quando a gente se apaixona e fica querendo
se despir pro sol
e eu fico pedindo pra ser expulsa de um paraíso que
não sustenta a ideia de que sangrar não é castigo, igual planta tem seiva
lembra? que mulher tem potencial de minhoca
sustenta tudo através de detalhes milagrosos das profundezas
e decompõe mesmo,
há de ser assim e isso me dói taaanto
tanto que eu nem digo
quem disse que não ia doer?
em respeito ao silêncio eu queria falar apenas palavras gostosas de pronunciar
tipo afã, filogenética, corisco, arauto, lambari
em respeito à palavra eu queria abrir a boca só pra provar superfícies gostosas de serem lambidas
falar é grave e às vezes tem gosto
de gás
de graça de fogo de existir de se despir
*
Há algo na existência que me exige fogo
Então me sento e acendo uma fogueira.
Enquanto ardo bordo 3 passarinhos na alta chama:
um é azul, um é vermelho e o outro amarelo.
Há algo na existência que me exige água
Então pulo do bote.
Enquanto afundo desenho 3 peixinhos espalhados pelo corpo:
um na testa, um no umbigo e outro no calcanhar.
Há algo na existência que me exige ar
Então retorno à superfície.
Enquanto respiro pinto 3 suspiros com tinta de pulmão:
o primeiro é lento, o segundo é morno e o último me faz boiar.
Há algo na existência que me exige terra
Então me deito.
Enquanto cavo planto 3 vezes os mistérios do Tempo:
um ontem, um agora e um depois.
Há algo na existência que me exige Nada
Então silencio.
Enquanto dissolvo repito 3 vezes a palavra “anlage”: aquilo que se tornará.