Seis poemas de Paulo Mielmiczuk
Paulo Mielmiczuk (São José dos Campos, 1995) é graduado em Letras, professor da Educação Básica paulistana e autor de Poética (Multifoco, 2014), Naufrágio (Kotter, 2020) e Noturno (Kotter, 2021). Além disso, administra o projeto voltado à divulgação de Poesia no perfil @poetica_mielmiczuk, no Instagram.
***
ESTRUTURAÇÃO DO SELF
no silêncio, meu rosto guarda
rascunhos, apenas, monetianos
que despedaçam, incertos
que espantam, agressivos
que se arrependem, humilhados
buscando a vida que repudiam.
tamanhos mundos, construídos
semblantes inexpressivos
em pinceladas ordenadas
livres impressões sobre nada
onde estilhaçam, livremente
fragmentos destruídos.
*
TERAPIA
é cisão
quando cava a toca o tatu
e se esconde, pois é presa
à contração dos músculos
escuros e tesos
à noite terrena
terrária
é cisão
quando abre trincheiras
e o peito que pulsa a angústia
o expulsa de si
e purga e propulsa
a vida que deixara
e do medo soergue
e da cisão claro-escura
da púrpura enérgica e pura
consegue
enfim
o azulino celeste
*
VÁCUO
certa vez disse à mãe
: “pintarei a parede!
de azul bem clarinho
e com fita embolada
e estrelas coladas
o céu, meu todinho”
sozinha ela riu
e como mãe era
falou bem sincera
o que se seguiu
: “fitas são fracas, filho
e não vão se fixar”
tomei distância
fitei a obra frustrada
no peito nas mãos de menino
sem céu
a galáxia perdida numa lágrima
*
PRAIA
o mergulho é interno
dizem os pais
e a vida
é seu castelinho de areia
chuá distante
olha o coco! ali ao lado
o baldinho vai se enchendo
e a pazinha, se erguendo
o tempo é mas-já
e é hora de partir
pois o reizinho é deposto
e o reinado, esquecido
em si
permanece ainda
a brisa quente
a face aturdida
o chinelo desliza
ardente arenoso
e chora o chuveiro
e ahhhh
a praia – ainda
às costas da memória
*
INOMINÁVEL
não se pode ver além. não se vê, não se quer ver. à imagem surda, os olhos fechados. olhos fechados de tanto ver além. e além, que se vê, não se vê. não mais. olhos se abrem, recuam e se fecham. espantosa opacidade do além-visto. insiste, abra os olhos, não abrem. força com os dedos e recuam, lacrimejam e se espremem às pálpebras. siga em frente, vá, abra os olhos. esforço negado, não se pode ver além, pois não se quer ver. não se vê pois não se quer ver – por outro e outro motivo.
um outro você vai caminhando, inomináveis formas à sua direita, à sua esquerda outras mais, frente e atrás mais algumas e em todas as outras direções. quem vê e o que vê, nada vê, nenhuma forma vista, quem conta sou eu e sou o silêncio.
de alguma maneira, a consciência ligada à visão se obscurece. e se obscurece porque nada vê. não vê porque não quer, porque não se pode ver além. e se pudesse, o faria – não faria, não tem interesse em temores. a consciência de quem é e o que se é escapa aos outros, mas não ao eu você. e o outro você vai caminhando, aqui e além, mas sem enxergar. sabe o caminho, caminhante e sua história, caminhante e seus passos. só não vê como vê, porque não vê. não se pode ver além da espantosa opacidade do além-visto.
sim, está em si. sim, acredita estar em si, o outro você ao eu você. olhos obrigados a se abrirem jamais se abrirão. desobrigados, tampouco. que estímulo. voltado a si, tenta de si se ausentar, mas não consegue. não. jamais conseguirá, pois só tem a si. não se pode ver. além não se é. não se pode ver além do que se é e do que se quer ver. à imagem surda, os olhos fechados recuam e se espremem.
de Noturno (Kotter, 2021)
*
INTRANSIGÊNCIA
do que enxergam têm tudo.
o pão, o vinho
o ódio
quem sou já não sei
a identidade a liberdade
angústia do outro
me prendeu
injusto julgamento
sei que sou mais cobra nutrindo-se ratos indigestos
e sei que deles
ratos
me desfaço
e o que pareço?
corpo de alegrias num motor desesperado?
contexto pobre de poeta podre
mas poeta
e ainda notícias
falsas e repletas de pequenas verdades
nessas miudezas pequeno me engrandeço
porque o que enxergam é só o que enxergam
e nada mais
e sempre menos
escrevo-te durante a noite, camarada
porque nela me concentro melhor
o sono não vem, a poesia tarda
e o dia está longe de raiar
trago-te, é verdade, cada vez mais notícias do imenso Matadouro
é que sou urubu pairando cabeças degoladas
que em mim jamais perecerão
mas já estou tão esquecido
a História se turvou
neste poema turvo e precário
poema pobre, mas poema
tentemos nos lembrar
e há algum tempo percebo silêncios e nãos
ó silêncios
já tentou ouvir o que dizem os ouvidos dos que ouvem?
faz muito tempo desde a última vez
gostaria de encontrá-lo
sinto saudade da liberdade
convivência alegre que tínhamos
o Matadouro é podre
não como poeta (tem
menos carniça)
mas convoca visitantes
cada vez mais
a Economia gira assim, né?
mas já não sinto prazer em degolas
exausto de tanta gritaria lá fora
tenho atido ao verso
abatido
é Guerra
e tens percebido? não vi tanque, não vi arsenal
vi o führer trapalhão e as trincheiras no peito
tenho tentado encontrá-lo, mas não encontro
monólogos batem na parede e voltam a mim
estou farto, solilóquios me angustiam
há outro? minha voz tem ecoado
ecoado
escoado
e nada cessa a solidão
têm tudo
o pão, o vinho
o ódio
e eu não tenho nada
tudo tão mutilado!
poemas pobres
mas poemas!
até que não exista mais liberdade
para emitir meus urros sós de
sespero
pois: adeus, companheiro
até um dia de resposta
adeus, companheiro
se ainda companheiro
minhas páginas cerradas
cadeado intransponível
dormirei pra atenuar meu sofrimento
mas tentemos nos lembrar
do amor, da conversa, do sentimento…
de Noturno (Kotter, 2021)
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Aurélio Miranda
Obrigado pelo afeto…