Seis poemas de Raquel Versieux
Raquel Versieux nasceu em Belo Horizonte, MG, em 1984. Artista visual, professora de Poéticas Visuais Contemporâneas na Licenciatura de Artes Visuais da Universidade Regional do Cariri. É também doutoranda em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro; instituição pela qual foi titulada como mestra. Ainda, cursou Fotografia na La Cambre – Bélgica e Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais. Desde 2019, realiza o projeto de arte comunitária “Manejo Movente”, na zona rural do Crato, Ceará.
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a mulher nua
a mulher nua entra no supermercado, em busca dos preços baixos
agacha na gôndola do óleo de soja seu cu quase toca o chão
a mulher nua na fila do caixa, conta moedas e paga, o óleo de soja e uma caixa de grampos, que escolheu por acaso, vendo uma senhora ajustar o penteado
a mulher nua caminha de mãos dadas com seu namorado,
a caminho do almoço, numa cidade de praia
passam por um beco de areia e diz: aqui, se estivesse sozinha, teria medo
a mulher nua chega sozinha ao restaurante, pede um pf, peixe frito e uma cerveja 600, quente no último copo
a mulher nua faxina a casa, limpa debaixo do sofá, arrasta o mamilo na beira do tapete e recolhe um tufo de cabelos e poeira
a mulher nua na fila da caixa saca seu 13º em espécie, enrola o dinheiro num maço de cigarros vazio, entra numa loja de departamento e compra, com desconto, uma capa pra máquina de lavar roupa
a mulher nua escolhe sua melhor nudez e chega 15 minutos antes da entrevista de emprego
um homem engravatado pergunta à mulher nua sobre seus planos de gravidez e aproveitamento da idade fértil
a mulher nua deixa a sala e observa uma bolha de ar subir no galão de 20 litros enquanto enche seu copo descartável
a mulher nua passa a catraca do ônibus e segura numa alça enquanto outras pessoas passam suas sacolas na sua cintura
a mulher nua comemora que tem um emprego no final do ano terá 13º a mulher nua compra uma máquina de lavar roupas
a mulher nua aguarda seu filho na porta da escola
o filho abraça a mulher nua
a mulher nua chega à sala de aula e dá bom dia aos estudantes
a mulher nua publica 8 artigos
a mulher nua recebe o entregador de gás
a mulher nua frita um peixe pro almoço
a mulher nua trepa na moto
a mulher nua vai ao oftalmologista
a mulher nua é pedida em casamento
a mulher nua afivela o sinto de segurança entre os peitos a fita lhe irrita a pele
a mulher nua dirige por 5 horas e 36 minutos sentindo o cinto de segurança lhe irritar a pele
a mulher nua, na beira da estrada, abastece o tanque, pede a senha do wifi e confere os e-mails
a mulher nua pede a chave do banheiro e faz xixi
a mulher nua devolve a chave molhada ao frentista
a mulher nua visita seus pais
a mulher nua sentada na praça ouvindo um podcast sobre o fim do mundo
a mulher nua embarca pra china e está aprendendo mandarim
*
desertos
as saíras voltaram
com suas máscaras pretas delineando a explosão tropical
o sol aparece mais cedo
as vacas seguem pela manhã e andam no pasto
na direção de onde já bate sol
e voltam à tarde
pra onde sabem que tem abrigo
o rapaz que corta eucalipto morreu
vítima não de uma árvore, não de uma queda
vítima da crença de que seu corpo era sua empresa
e ele cabeça
com o motor da motosserra
seus ouvidos não ficam mais surdos
os outros serradores em medo solidário
silenciaram suas roçadeiras
e estão em casa
recuperando tônus
que os faça cortar os desertos verdes
e voltarem pra casa, na certeza de amparo
enquanto isso
o luto é um silêncio pras aves
mas não sei precisar se por isso elas estão felizes
não sei precisar se as árvores estão mais felizes
não sei precisar se há alegria nos desertos
eu vi o rapaz que cortava eucalipto trepar no tronco
com suas pernas e esporas no pé
golpeando com precisão
a força que o fazia subir
no alto, sem proteção
ele amarrava uma corda
e esse fio era nosso guia
meu avô paterno
homem branco imigrante europeu
desmatou muito mais
o fogo foi sua queda
uma fagulha que rodou do trilho e trem de ferro
e pousou nos troncos secos da madeireira
salamandra na beira da estação
seu silêncio maior
décadas de depressão
e minha avó levando a casa
as roupas as crianças as compras as comidas
foi ela que soube cuidar do fogo,
como é das mulheres cuidar do fogo
e medir as vinganças
eu vi meu avô tremer as pernas na beira do mar
os pés afundando na terra enquanto seu corpo vibrava
não sei o que ele via do outro lado
sei que tremia
tinha medo da memória
da água que faltou no incêndio
das abandonadas filhas no seu velho mundo
dos rios braçados que chegavam nas matas
e ele via madeira
as ondas batiam
seu corpo arquejando e eu o olhava nos olhos
não sei precisar se o mar ficou mais calmo
foi aí que aprendi o ácido das marés
e nos sentamos na areia
*
bem muito antes que escrevam teu nome
escreve teu nome numa pedra
enquanto esteja viva
pra que as outras não o façam por ti
depois da tua morte
proíbe a caça e a pesca no entorno da tua morada
ainda que por ali tenha um lago e os pássaros voem em “v” às 5h da manhã
traça devagar o caminho pra casa
come das folhas que boiam no espelho
d’água faz da pedra o que habita
tua passagem
antecipa tua idade
saia e camisa estampadas
se possível numa
pedra vermelha
arrisca
avança fundo teu nome em qualquer beirada de rocha
grava forte a linha que sulca
arenitos carbonatos calcários gnaisse
alcança tua mão e te vaporiza
bem antes,
bem muito antes que escrevam teu nome
(comi Jeane aqui, li numa cachoeira)
tu já terá feito
*
onde a onça está
já corri de arrastão
de madrugada
de homens que falavam outra língua
de onça no mato
de madrugada
de homem armado
de homem com faca
de homem com piroca
de homem que me batia
de madrugada
de homens da torcida organizada
de homens que soltavam bombas na manifestação
de homens da polícia
depois da chuva
perdi o sapato
corri descalça
perdi a hora
de mochilão
no raiar do dia
por tudo isso, lamento
exceto pela onça
pois é questão de
saber onde a onça está
a onça atrás de nós
nós atrás da onça
e ainda sonhamos
a onça à nossa frente
*
porto das sopas
escrevo um poema como quem
recolhe os pratos sujos na mesa
onde comeram famintas
estradas ruas
descidas
fui parar onde convinha
aos pedaços soltos nas bordas
restos arrastados com o garfo
foi preciso cara de louca
olhos vidrados
recolhendo o brinde de ontem
cheio de bebida seca
que retumba o peso
de ter corpo
e segurar copos
alimento viagens
rotas surgem à minha porta
no lusco fusco
em busca de banho e pouso
restauro
sou porto das sopas
de onde partem
mastigadas e com pés lavados
andarilhas senhoras
e marmitas
aguardo as próximas aventurinas
folheando páginas da mica
como quem lê a mão
conto histórias do passado
prevendo incêndios, naufrágios
amiga, trago um conselho
isola a eletricidade antes do choque
forra o fogão onde cozinha letras
e blinda do que é condutora
a escrita
*
algodoar, devolvir
o presente que temos
é suficientemente raro
embrulhado
o presente que temos
nos foi dado
e tem sido redado
por anos a fio
se c me desse o mesmo presente que d me deu
seria outro
seria a parte de c que mais quero
ainda que com a mesma fita
eu não daria de presente pra c o que dei pra d
dar é como nadar
nunca duas vezes no mesmo rio
jesus não sabia nadar
o segredo de fazer o mar se abrir
sólido medido em litro
não há como escapar da Terra
areia engolideira do mar aberto
do futuro importa pouca coisa
e o que importa
traz pra perto
mineiros minervam
topo tupi utopia
fundo
outras formações econômicas
embrulhada do estômago
no pixel abismo
deste presente
fundo do poço
doar para receber
abrindo concessão
de mim para mim mesma
a contradádiva da auto-reciprocidade
silencio dores
mas morder eu não mordo não
mostro os dentes de outro modo
enquanto os tiver
algodoar
do verbo
devolvir
ouço
meu coração
de boca aberta
meu presente,
dentes de nuvem
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(Fotografia: Elisa Mend [detalhe em p&b do original colorido]).