Seis poemas de Renato Mazzini
Renato Mazzini (1981) nasceu, vive e escreve em Santa Fé do Sul, interior de SP. Trabalhou com rádio, escreveu crítica musical, foi professor de inglês. Publicou os livros de poemas Paisagem com dentes (Oficina Raquel, RJ. 2009), Aqui começa a Antártida (Patuá, SP. 2015), História inconclusa de la velocidad (Zindo y Gafuri, Buenos Aires. 2016) e O último verão de nossos inimigos, (Urutau, SP. 2020). Seu quinto volume de poemas, Aventuras no Hipervazio, aguarda publicação. Os poemas aqui apresentados fazem de outro livro, Ritos de devoção à eletricidade estática, em preparo.
***
Spark
Estar vivo, eis a matéria
desperdiçada, a colisão
entre inércia e finalidade.
Ao corpo convém
o contrapelo do abraço
a determinação de prosseguir
contra o que lhe fere: sal
e afeto para os machucados.
Um acinte
que confere a quem vive
a prerrogativa de desferir
quantas rajadas de socos
bastarem para devolver
Aquela parede tão triste
Ao pó de que veio (estar vivo)
*
Arquearia
A verdade é um ângulo perigoso
se você a trouxer nos ossos.
Afeta o estado das coisas como
avalanches a vilarejos.
Nunca se poderia supor
o real alcance da flecha que
varou um corpo embebida
com a verdade e este adoeceu
(o corpo) com as reminiscências
de sua passagem (a flecha)
*
Pragas rogadas em paz
Estávamos conversando sua revolta
sobre troféus serem a cristalização de alguma
morte como recompensa ao outro, por
permanecer vivo, quando
o automóvel parou.
Você, do lado de fora, um pé,
depois o outro. Eu, um pé,
o outro. Em minutos, o táxi
parecia uma história de fuga que havíamos contado.
As poças d’água sob nós, acima de
nós e nos contornando por
todos os lados, essas não mentiam:
a gravidade reversa poderia ter feito da chuva
algo memorável
num dia em que as plantas cresciam
contra nossa vontade
com a insolência dos bem-aventurados
*
O estado das coisas
Pássaros à guisa de veneno
corroendo o ar
e se todos os relógios em todos
os bolsos e pulsos e telas
estivessem sincronizados, talvez
e depois da superação de certas
marcas de desafio ao fôlego e à
pulsação
ou carros demais (e perfuratrizes)
se a lógica é a da sincronia (outra
vez, nunca mais) e talvez nunca
tenha sido
ou quando cada janela em cada
sacada abre e fecha ritmicamente
comunicando a fração de
entranha nessas
cifras de uma canção
no entorno dos escombros
*
Os arquinimigos
Esbarram-se no corredor de serviço,
cumprimentam-se com um gelado aperto
de mão e tomam direções diferentes.
O primeiro sobe pelo elevador, sorri, chiclete
de miasma entre os dentes, um dedo do
outro num colar, movimentando-se
em frames muito pequenos.
O segundo desce pelas escadas, sorri, assobia
presságios de guerra, três dentes do outro
em sua mão, guarda na valise de couro
seu desejo de aniquilação.
O dia escorre desajeitado pelo meio fio,
não há trilha sonora incidental e nenhum dos
quatro participantes desse poema
parece compreender o conceito de souvenir.
*
Parte
O sol parte em busca
de um novo lugar,
levando consigo cada
uma das tantas
inconveniências da luz.
Deixado ao sabor de
sua própria incompletude,
um corpo permanece.
Pensa a mimese como
um tipo de ode
ao que sempre teve que ser.
Você, se muito, se pudesse,
se tudo aquiescesse,
você seria
seu próprio parasita?
seu próprio hospedeiro?