Seis poemas de Thiago de Souza
Thiago de Souza, filho de potiguares e de piauienses, nasceu em Fortaleza em 1996. Formou-se em Psicologia pela Universidade Estadual do Ceará entre 2015 e 2020, período em que descobriu possuir certa obsessão literária por cães, por gárgulas e pelos leões de pedra da capital cearense. Costuma escrever como uma forma de retirar imagens do espelho, ou o contrário.
***
monolito
o sol de todo dia
mais do que nunca
será legível
e nascerá dentro e fora:
estará ali, um monolito diante de meus olhos,
e aqui, esfinge cínica, prostrada
onde não terei pálpebras para defender-me
mas palavras para dizê-la, tão-somente
tão-somente e ainda.
*
dívida
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens de usura
Ezra Pound, trad José Lino Grunewald
algo de qualquer canto
para ser menos que meu menos rente ao nós e mais
próprio ao deus
dará dessas mandíbulas
em entusiasmo atentas
sempre aguardando o momento
em que algo lhes será
novamente entregue, plumas que não tenho
que hei de lhes entregar não obstante tudo
um gesto um espolio antes de tudo a ser entregue
uma imagem um tempo antes de tudo a ser entregue
uma carne um leite um povo inteiro
aos filetes e fileiras aguardando
cada qual sua senha a sua
vez de dar-se à morte
*
bacilo
quase preso ao formato amorfo de todo estilhaço
ruína ou relíquia, caminhante ou sirgado
ou quem sabe
dos dois o resultado
por pouco não caio e não largo num percalço
o fragmento que trago
como se fosse memória
como se fosse milagre
como se fosse uma ave
como se fosse impossível
por pouco, por pouco não alastro
*
sol
verás aqui e ali
por entre os metais queimados
os restos, o peito
verás o corpo sem coerência calcinado
mas ainda em sua orbita
verás o fato das imagens, que é um trauma,
o couro pendurado ainda arfando sangue
a paz ordenada em torno do abismo claro
a luzir em cada um dos cacos em redor
os escombros de um rosto
que é o próprio rosto real agora
verás que dessas ruínas não se extrai
nem espanto ou mote
e que jamais o anjo da morte
sequer nos desce realmente os olhos
olhos que nos arrematassem
ainda que às claras
um fim ou uma fenda abrupta
que nos revelassem uma voz ou um gesto
que não estes que insistem tanto mas tanto
no mesmo tempo no mesmo verbo
se é mesmo um tempo se é mesmo um verbo
este sol intacto à nossa frente
consumindo-nos empilhando-nos
alargando-se incessantemente
*
anamorfose
não há palavras
não há silêncio
nem mão nem sopro
contra as fechaduras.
sem ventos e
os corpos ainda
desaparecidos.
no meio do caminho
apenas a vespa
espasmo
torção e cisco
buraco no objeto
a vibrar sino ruído obtuso
nódulo sonoro
a latejar
quase explodindo
as veias instáveis
do canto dos olhos
– mais que pedra, um portal
ante a fatigada retina
retendo
num só ponto, centenas de
milhares de
batimentos cardíacos de
asas, chaves
*
morte/milagre
ainda que caminhássemos
com a convulsão do tempo
com o rosto involuntário
trarias no bolso aquilo
que é morte para este império
mas um milagre a medrar entre teus lábios
Pingback: [Reportagem] “Artintimismo”: o que diz a arte quando ela não é vista? – ConFicções