Seis poemas e um conto de Camila Saloto
Camilla Saloto mora na Alemanha há 15 anos. Se formou em comunicação e história da arte pela Universidade Friedrich Schiller em Jena e mestrado em artes midiáticas na universidade Bauhaus em Weimar. Hoje trabalha com escrita criativa, é escritora, fotógrafa e mãe de duas crianças, Leon e Marina.
***
Falhei
Falhei miseravelmente
Em inflar seu ego rasgado
Não há quem aguente
Suga a vida ao lado.
Não pensem que não fui leal
Lealdade me esvaziou.
De todas as servas, a mais real
Você se foi e nada restou.
Acha que ela vai aguentar calada
Seu mau humor quando tem fome?
Quando você vira e berra do nada
E de repente você sai e some?
Sou fraca pra caralho
Disso você sabe bem,
Tenho meu trabalho
Meu dinheiro também.
Mas por um ato falho
De você sou refém.
*
Estrangeiro
Me faz um bem, me faz
Me perdoar meu exagero
Minh’alma se faz paz
Não sou mais estrangeiro
Em meus erros casuais
Me moldo como ferreiro
Sem delongas e ademais.
Sou rio que deságua
Lá no vale dos maus modos
Sou mui desconfiada
E às vezes incomodo.
Quem passa Ness’estrada
Distraída não percebe
Vou com a enxurrada
Na espreita, tu te aquiete
Pois se vem mal intencionada
Dessa água tu não bebe.
*
Expectativas alheias
Eu não sei tocar piano.
Eu não sei rir baixo
Não sei fazer planos
Não sei sossegar o facho.
Eu não sou delicada.
Eu não sou de fachada.
Eu não sou obrigada
Eu não sou nada.
Eu não gosto de cópias
Não gosto de máscaras
Nem de respostas óbvias
Nem de coisas caras.
Eu não posso controlar
O que pensa de mim
Eu não quero te provar
Nem não, nem sim.
*
Vontades
Eu vi você
Passar pro mar
Assim bailar
Sem som pra mim.
Você e eu
Sussurros de sim
Ao som do beijar
Entre juras de amar.
O que aconteceu?
Náufragos do sentir
À deriva do porvir.
Será que tem jeito?
Dizem que sempre há.
Há vontade?
A vontade de terminar,
À vontade, recomeçar
Eu vi você
Passar pro mar
Assim bailar
Sem som pra mim.
Você e eu
Sussurros de sim
Ao som do beijar
Entre juras de amar
Pressão no peito
Ocupar o leito?
No vazio me deleito
Com delitos do eleito.
Era você, sempre foi
Jamais seremos um
Não faz sentido algum
Um par de mais de dois.
*
Nada
Às vezes
Tudo que eu quero
É não querer
Nada.
Mas querer nada
É querer.
Nada
Não existe
*
Sufocada
Ela se sentiu sufocada,
Pois às vezes a vida
Parece uma piada.
Ela quer uma saída
Mas só encontra entradas.
Vertical de portas ao redor
Enorme fachada.
Mais perto, maior
E ela, encurralada.
Parece uma piada
Desliga o despertador.
Às vezes, na vida
Se sente sufocada.
*
Vida de Pano
A agulha me picava. Furo após furo, a forma idealizada se revelava diante da deusa criadora. Deitado sobre a máquina, eu vislumbrava seu Olimpo. Um ventilador de teto com uma lâmpada presa a ele se balançava no ar em um movimento contínuo e ameaçava se espatifar no chão a qualquer momento, como num prenúncio de uma morte esperada. Atrás dela eu via uma janela descortinada. A luz penetrava o ambiente em difusos fios rebuscados pelas milhares partículas de poeiras que sobrevoavam o pequeno quarto. Peles. Pêlos. Panos.
Do lado direito, uma cama de casal. Velha. Madeira de pinus, clara, porém encardida pelo tempo. Simples, pequena, sob uma colcha de cetim que já desfiava em suas contagens dos anos. Havia no quarto também um pequeno caixote de onde saía sons e imagens, bem colocado exatamente de frente para a máquina em cima de uma cômoda. “Para não ficar tão sozinha…” dizia ela quando ele reclamava de uma tal conta de luz.
“Vai ficar cara!”
“Sou eu quem paga pela energia!” Ela retrucava de maneira enérgica com certo tom de orgulho prepotente na voz.
“Mas o dinheiro” ; ele revidava, “ é nosso! É tudo sempre nosso. Nós estamos juntos na vida, então é tudo nosso!”
Enquanto ele protestava com veemência, ela respirava fundo. Parecia buscar dentro dela um resquício de quem ela fora antes dele. Esse e tantos outros diálogos, ao que me pareceu, se faziam recorrentes entre os dois.
Quando ela me tocou pela primeira vez… Eu era só tecido. Senti o pulsar de sua vida abafada. Aquelas mãos calejadas, alongada por dedos finos e ressecados com unhas roídas, alguns até feridos. Percebi que essas mesmas mãos escondiam sua boca quando ela sorria orgulhosa. Eram também as mesmas mãos que expurgavam do rosto as inúmeras lágrimas que presenciei no pouco tempo que estive com ela. Então descobri que deusas também choram.
Qual o sentido da vida? Dessa vida? Ela murmurava enquanto me cortava com a tesoura. Mãos firmes, porém úmidas do líquido salgado que insistia lhe invadir a face. E nesse manejar da tesoura, eu me via em pedaços, sem saber o que seria da minha própria existência dalí para frente. Vida própria? Quem a tem?
A deusa me tinha sob controle. Ela terminou-me. Segurou-me com as pontas dos dedos, os braços estendidos à altura dos olhos. De lá, pude ver um chão de madeira. Tacos. Muitos deles já desobedientes, não se encaixavam mais ao chão que lhes era morada. Enquanto eu vislumbrava o chão, ela me examinava minuciosamente. Franzia a testa. Mergulhava em linhas e pontos. Aqueles olhos cor de mel, normalmente escondidos nas profundidades dos anéis marrom escuros ao redor deles, se iluminavam agora e refletiam o seu gozo, fruto do prazer pela perfeição.
Seu brio ornamentado com a prepotência dos deuses criadores revelavam a sua verdadeira face e me conduzia a um estado de adoração e temor. Fitou-me por um último momento. Fez um movimento rápido com a cabeça, para cima, empinou o nariz, enquanto um sorriso cínico de canto de boca se fazia notável, mesmo que tenha durado frações de um segundo. Pouco tempo para que ela se desse ao trabalho de escondê-lo.
Então, como que com desprezo, jogara-me em uma caixa, assim como fazem os deuses com suas criaturas. Até então eu não havia notado sua existência, mas ela estava alí, ao lado da máquina de costura à minha espera, já abarrotada de peças provavelmente iguais ou até mesmo idênticas a mim. Eu ainda não sabia que forma tinha. No susto, não reparei no que havia lá dentro enquanto caía, e após cair… Bem, caí em cima de outras peças, portanto, não conseguia vê-las. E por não poder ver as minhas iguais, eu ainda não sabia quem eu era.
Ausência! A deusa deixou o quarto. Escuridão. Silêncio. Tormento numa alma de pano. O silêncio encharcava meu ser inerte, enquanto o escuro espalhava suas garras em minhas fibras. Ela voltaria?
Foi nesse momento que eu percebi o silêncio sendo interrompido por alguns sons abafados e chiados. Ouvi vozes. Uma conversa comum me afastava do silêncio que me torturava. Vozear exaltado. Cada vez mais rápido, retrucante e impenetrante… Barulhos de objetos que caíam. Havia correria. Hora as vozes pareciam mais perto, hora mais distantes.
Eu tentava, mas não conseguia distinguir o que era dito entre eles. Num ápice, algo de vidro de se espatifou contra a parede. Um grito agudo transpassou os tijolos. Se eu tivesse espinha dorsal, sentiria nela frio. Se tivesse olhos, estariam arregalados. Mas apenas senti medo e talvez alguma linha tenha se rompido na minha costura, tamanha era minha angústia. Silêncio, novamente. Desta vez mais ameaçador do que antes. E mais duradouro também. Ela voltaria?
…………
Eu não sei bem o que ocorreu depois. Devo ter cedido ao cansaço apesar de toda a tensão. Era só escuridão, por muito tempo. Acordei em outro lugar. Estava com outra pessoa. Essa me examinava com um olhar curioso. Não sei se era em relação a mim ou talvez era essa sua forma de olhar. Não parecia estar extremamente feliz em me ver. De repente, ela me pôs a boca e vestiu-me. Olhou-se no espelho e pela primeira vez pude visualizar minha forma em sua face: cobria sua boca, queixo, nariz… Eu acho que o mínimo que as pessoas deveriam fazer, era pôr a máscara! Tem gente que sai para fazer corrida na praia sem máscara, é muito absurdo! Ela falava enqaunto se olhava comigo à sua boca no reflexo do espelho.
“Sim, eu li esses dias, que o uso da máscara ainda diminui as chances de desenvolverem a doença de forma grave.” Havia outra daquela critura por perto. Seriam também deusas? Eram semelhantes, mas a que me criara possuía no olhar algo que essas não possuíam. Talvez o poder da criação? Elas seguiam discursando sobre máscaras, doenças, vírus.
Havia um vírus. E eu havia sido feita por uma deusa para ajudar as pessoas a viverem e não adoecerem, ou pelo menos não adoecerem tanto. Confesso que num primeiro momento estava decepcionado por não ser um vestido elegante de festa, como outros panos me contaram que seriam. Ou uma blusa, uma calça… Mas quando entendi meu lugar aprendi a me orgulhar de mim mesma. Agora eu não era mais O tecido. Eu era A máscara. Não era a única máscara da moça, mas isso não me incomodava. As outras eram também feitas pelas mesmas mãos criadoras que me fizeram.
“É estranho usar essas máscaras da Luana. Não dá para acreditar!” Falava a moça com voz embargada.
“Acho que ela quis se vingar dele. Fez da pior forma possível!”
“Não acho. Ele a torturava, a matava aos pouquinhos. Acho que foi a maneira dela dizer para ele, que ela ainda tinha o controle. Ela mandava na vida dela. E na morte…”
“Acha que ele entendeu o recado?”
“Duvido! Ele vendeu as máquinas dela para ajudar a pagar as despesas do enterro… Dizem que ele ainda reclamava que até morta ela causava prejuízos…”
“Não entendo o porquê dela ficar com ele. Ela não dependia dele!”
“E você acha que ele a deixaria em paz? Nunca!”
“Mas existe justiça, lei. Ela podia ter procurado ajuda!”
Depois de um silêncio, que apesar de curto, foi muito incômodo, a boca por detrás do meu tecido, então disse:
“A mesma tesoura que fez essa máscara…”.
Senti o gosto salgado do líquido que sai dos olhos mais uma vez encharcar minhas fibras. Alí eu entendi que deuses também morrem.