Sertanejo Bão – Por Valéria del Cueto
Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Da série “É carnaval” do SEM FIM… delcueto.wordpress.com
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Quando o filme Dois Filhos de Francisco estreou nos cinemas brasileiros, por um erro de estratégia de lançamento, a campanha foi feita utilizando opiniões de formadores de opinião qualificados, mas “Nutellas” sobre a obra. Só que esta dinâmica não sensibilizou o público que, na primeira semana, não compareceu às salas como era esperado.
O sucesso do projeto veio embalado por um incrível boca-a-boca que, depois da patinada inicial, transformou o filme numa das maiores bilheterias do cinema brasileiro, consagrando o diretor Breno Silveira e colocando em seus devidos lugares o incrível elenco e a equipe que produziu o projeto, da Conspiração.
Assisti o filme, ainda na primeira semana, no lendário Cinema Roxi, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Este texto cantava a pedra do sucesso que ele alcançaria e do incrível caminho que percorreria para chegar a ele.
É minha homenagem, feita na época, ao diretor Breno Silveira que acaba de partir e nos deixa uma obra marcada pela brasilidade e por explorar nosso incrível e rico Brasil profundo.
V.
PS: Já revi o filme muitas vezes e sempre choro na cena final, quando Seo Francisco e Dona Helena sobem ao palco do show da dupla Zezé de Camargo e Luciano que estão cantando ” No dia em que saí de casa”, de Joel Marques. Num trecho, a letra da música diz que “depois que cresce o filho vira passarinho e quer voar”. Breno voou…
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Sertanejo Bão
Publicado originalmente em https://delcueto.wordpress.com/2005/08/29/sertanejo-bao/
“Mas… é iguarzin que lá na roça…”, diz a senhora de mãos calejadas, desamassando as dobras do seu melhor vestido. “Que lindo o moleque que era o Zé de Camargo, quer dizer, o Mirosmar criança, tinha brio nos oío…”. Completa a outra. “Taí o que o povo precisa de ver. Ele mesmo dando certo. Sonhando e sendo feliz…”, opinião do senhor que conduz a mulher “Fiquei com os óio cheio d’água na hora que o mínino morreu.”, diz ela, limpando uma última lágrima . “O bom é que a gente conhece a história e sabe que apesar das tristezas, tudo vai acabar bem…” consola-se.
Opiniões como estas é o que falta para a carreira de “2 filhos de Francisco”, filme de Breno Silveira, que conta a história de Zezé de Camargo e Luciano, produzido pela Conspiração e distribuído pela Columbia, decolar. A fala de gente comum que, de alguma maneira, não vai ver as cenas do filme como uma obra cinematográfica mas, encontrar nelas um pedaço qualquer da sua própria vida. Dizem que o povo ainda não chegou até o filme. Se isso é verdade, um novo fenômeno pode acontecer: “2 Filhos de Francisco”, vai crescer e não reduzir sua bilheteria nas próximas semanas.
A SAUDADE MATA A GENTE…
Assisti o filme num sábado chuvoso, no meio da tarde, no Cinema Roxi, em Copacabana. E, apesar de parecer estranho, vou falar do filme numa posição que muito me orgulho de ostentar: de alguém que teve o privilégio de conhecer e, sim, viver a realidade apresentada na tela.
Tudo era de verdade. O rádio de pilha que não pegava, o sol escaldante, o solo árido e o suor pegajoso. As estradas de terra, que entrava na boca de quem ia na parte de trás da caminhonete, comendo poeira.
Como a poeirada do baile no “salão” de terra batida onde Mirosmar aprende a tocar acordeon, em meio a nuvem de pó levantada pelos pés dos dançarinos . O desconforto dos ônibus, a sujeira das paradas, o barulho da rodoviária e a cara amassada e suarenta dos viajantes.
Impecável o trabalho da diretora de arte, Kiti Duarte. É claro que meu “eu” que percorreu as estradas do centro oeste desde os idos de 1966, ainda criança, não diria isto. Explicaria assim: “É tal e qual, sem tirar nem por”… Tudo é cuidadoso: o figurino, a maquiagem, o clima alcançado. A única restrição que faço, mas explico é a farda dos milicos, super amassadas. Não era assim. Daria cadeia e punição. Nem todo mundo é filha de milico para saber de um detalhezinho como este…
PRA IR AONDE O POVO ESTÁ
Por isso que acho que falta deixar o povo falar do que viu e sentiu. Mostrar o filme para ele. Não em multiplex, que “este” povo não chega lá. Mostrar nos cinemas brasileiros, gastar as cópias em projetores menos sofisticados. Talvez “2 Filhos” tenha perdido para “A Sogra”, comédia com Jane Fonda que também estava em sua primeira semana de exibição, no quesito número de espectadores por sala. Mas foi porque as salas não eram as freqüentadas pelo público alvo preferencial do filme.
Já sei, vai dizer que o filme não fez feio, apenas não estourou como devia. Não concordo. Ele ainda não chegou onde devia. E por onde passou, arrebanhou admiradores. Não fosse assim, por que foi aplaudido (!) no final da sessão? Isto no Roxí, em Copacabana, não num cinema de periferia, ou no interior do Brasil.
Era uma sessão repleta de povo do bairro: velhinhas, crianças e mais idosos que chegaram ao final da exibição de olhos vermelhos e cheios de esperança. Afinal, ali se via uma história do sucesso. De um sucesso que poderia ser de qualquer um de nós que, como Seu Francisco, tivesse um sonho e, isto quem diz sou eu, uma mulher como dona Helena.
TEMPERO ROÇEIRO
Outros trunfos ajudam a fazer de “2 Filhos de Francisco” o que ele será. Um, o elenco. Já é voz corrente que Ângelo Antônio dá um banho no papel de Francisco, Dira Paes faz o contra ponto. Tanto a escolha, como a direção de atores é primorosa.
Dizem que Paloma Duarte seria merecedora do “Prêmio Panda”, instituído em Gramado há muitos anos atrás por freqüentadores ilustres do evento para “premiar o cinema de INVENÇÃO: um instante, uma cena, um clima especial. Aquele instante em que o cinema se revela com toda a sua potência criativa”, enfim, algo que fizesse diferença, como o “arfar” de sua respiração no momento em que encontra Zezé de Camargo pela primeira vez.
Outro ponto alto, sem dúvida, é a música. Se para quem não tem referências sertanejas ela já é maravilhosa, imagina o que acontece com
quem, na terceira nota da gaita tocada por Mirosmar para o pai, já sabe que outras notas depois ele estará “executando” o clássico “Menino da Porteira”. Ou para quem é capaz de reconhecer a música de Pena Branca e Xavantinho.
Acho dispensáveis as participações de Caetano Veloso, dando sua pitada sertaneja, e Nei MatoGrosso, com “Calixbento”. Talvez se Nei tivesse visto a cena, pudesse interagir melhor sua interpretação com o momento em que a música é usada. Foi teatral demais. Deveria ter sido mais próxima da forma com que ele interpreta “São Francisco”, no disco (é… eu disse disco, coisa que se vê muito neste filme) “Arca de Noé”, de Vinícius de Moraes.
CORAÇÃO BRASILEIRO
Poderia falar do ritmo, estilo, timming…Nada disso é relevante para o público que pode fazer deste filme um verdadeiro sucesso. A emoção está ali. Numa história verdadeira. E brasileira. Tão brasileira quanto a falta de luz elétrica no interior do país e o churrasco rodízio que passa sob os olhos famintos dos meninos cantores.
Um último toque, a lição que fica para mim e, espero, também seja percebida pela dupla. O canto sertanejo é lindo, lírico e sensível. Foi ele que alavancou, inclusive, o orgulho de ser caipira. A coisa pega quando tudo isso ameaça virar country.
Cabe aos “formadores de opinião” do pedaço e aqueles que podem dar voz a nossa cultura popular, a responsabilidade de alimentá-lo e fazê-lo evoluir. Usando a inspiração que Deus lhes deu, e o apoio de homens como Seu Francisco, para fazer da música sertaneja, uma das mais brasileiras de nossas manifestações culturais.