Sete poemas Ariane Viana
Ariane Viana nasceu em 1984, em Belo Horizonte. Servidora pública, graduou-se em filosofia e em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Selecionada pelo Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura para o Curso Livre de Preparação de Escritores (2021) e para o Poesia Expandida (2022), a poeta estreou em 2022 com a publicação do infantojuvenil Como a gente mora? (Caravana Grupo Editorial) e de Pontos no mapa (editora Urutau).
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Às vagas
Pouco importa
em quem pensa o náufrago
ilhado enquanto escreve
o pedido de socorro.
Lançada ao mar, a mensagem é
pra quem a lê.
Qualquer leitor é um milagre.
*
Corpos que habitam a mesma camada do Cosmos
Vivem
ou não vivem
no mesmo mundo os hiaitsiihi
por não ter números a língua pirahã?
Corpos que habitam outra porção
da mesma Terra, hoje chamada
Brasil, nomeada em língua estrangeira
por desígnios
de um povo distante, prescindem
da matemática, alfabeto com o qual
disse Galileu
Deus teria escrito todo o universo
mas, como eu (e Galileu), os hiaitsiihi
não se interessam pela ideia do Criador.
*
Razões pedagógicas
A grande quantidade de álcool
presente na antiga fórmula
do Merthiolate
ensinou às gerações passadas
que a desobediência podia ter consequências
ainda mais dolorosas do que os joelhos ralados
fazendo do medicamento um produto antisséptico
e ao mesmo tempo pedagógico.
As mães às vezes se zangam.
Talvez isso explique
por que os moradores da cidade de Catânia
aos pés do Etna referem-se ao vulcão como mãe.
O Brasil não tem vulcões.
Talvez isso explique
por que a sensação de ter um vulcão em erupção
na própria pele
provocada pela administração
de álcool
em feridas abertas
foi um método tão utilizado pela ditadura militar brasileira
para ensinar às gerações passadas
que a desobediência podia ter consequências.
O Etna é um dos vulcões mais ativos do mundo.
Isso talvez não explique
por que foi na Itália que surgiu o termo
fascismo, até hoje, por extensão, utilizado
para se referir a regimes políticos caracterizados pelo autoritarismo.
O povo às vezes se cansa.
Talvez isso explique
por que Mussolini foi morto
e dependurado de cabeça pra baixo pelos partigiani
para que as futuras gerações aprendessem
que a desobediência podia ter outras consequências.
Tem origem italiana
o sobrenome Bolsonaro.
Isso certamente não explica
por que Jair é fascista.
Mas o povo às vezes se cansa.
E isso talvez explique
por que em Goiânia, na Assembleia
de Deus
foi o próprio Jair quem disse
que, caso não reeleito em 2022
só sairia do Palácio do Planalto preso
ou morto.
*
Eu acredito em mães
Quando éramos pequenos
sempre que linhas brancas riscavam o céu
a mãe falava: Olha lá
o trenó do Papai Noel passando!
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O rastro deixado pelos aviões
foi visto pela primeira vez em 1919
quando as aeronaves enfim alcançaram alturas suficientemente altas
onde as temperaturas são suficientemente baixas
e os gases quentes das turbinas condensam-se
em cristais de gelo que formam as nuvens
f
i
l
i
f
o
r
m
e
s
.
Desde então
as mães transmitem
por telepatia ancestral
entre si a história
que acalmava as crianças do pós-guerra.
*
História mínima, com adendo e dedicatória
Duas magrelas na rua
de chinelo e shorts.
Ele para, acena, abaixa o vidro
e mais.
Não quer saber onde fica a rua tal.
Uma grita a tempo
de a outra também sair correndo
e se entocarem num comércio próximo
por uma meia hora
e só
ter ficado o gato
(que, com o grito, tinha pulado
pra dentro do carro)
brincando na sarjeta
com duas bolas vermelhas
entre as patas
peludas.
Prezado pedófilo,
Aceite o bichano
interessado por suas partes
como aquele presente
que fiquei te devendo.
*
Estão se guardando
A partir de documentário de Marcelo Gomes.
o que diria João Cabral
se, ainda vivo
soubesse que
Toritama segue sendo cemitério
pra tantas vidas severinas
homens e mulheres e crianças
metamorfoseadas
não em cães
nem caranguejos
nem lama
mas bichos-da-seda
tecendo sobre si mesmos
e seus irmãos
das almas
casulos-mortalhas
de brutos fios
de algodão
de onde saem
somente uma vez ao ano
voando alvoroçados
como um bando
de borboletas-azuis índigo
famintas de carne humana
sedentas de suor e urina
*
Animais marinhos
O vento infla as cortinas do quarto
barco a velas ancorado
no topo do edifício
nossos corpos vagueiam
contra o oceano azul do céu
uma espuma branca
já se derrama
sob o lençol
você repousa a cabeça
no meu umbigo, ondas
ecoam:
a parte interna
do ouvido
tem o nome de caracol.
(Foto: crédito de Rogério Jr.).