Sete poemas de Alexandre dos Santos Cunha (K10LBO)
Alexandre dos Santos Cunha, vulgo K10LBO, nasceu em 1998, Santo Amaro BA, mas reside em Amélia Rodrigues. Poeta, escritor, cantor, compositor e licenciando em Letras com Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, tem obras publicadas nas antologias: Girassol por Amélia e Poesia de Status.
Os poemas a seguir vieram do projeto de livro: “Confusões: A meia-noite é o início e o fim do dia”.
***
Visita
Escrito no papel
e posto num lugar à vista,
a mensagem advertia-me:
arrume-se: hoje tem visita.
Pus água do café
no meu fogão de quatro bocas
e fervi o leite até
subir a nata. Lavei a louça,
limpei o chão, a mesa,
até os eletrodomésticos,
organizei, assim, os livros
por tamanho, todos simétricos.
Lavei meu corpo nu
no chuveiro, passei shampoo,
sabonete cheiro de coco
e usei minha toalha azul.
Passei perfume pelos
pulsos, pela nuca, também
pelo diafragma, lembrando
que a visita logo logo vem.
Pus um livro no colo,
preferiria ficar a esmo
até chegar minha visita:
minha visita feita por mim
mesmo.
*
Não fale com estranhos
Não fale com estranhos.
Não fale com a mulher da padaria que te atende.
Não dê teu dinheiro,
Não receba o troco.
Não fale com estranhos.
Não tenha novos amigos,
pois se são novos são estranhos.
Não frequente o supermercado:
o supermercado é um lugar cheio de estranhos
com uma lista na mão
riscando os produtos produzidos por outros estranhos.
Cuidado com a biblioteca.
Desde as prateleiras às cadeiras,
ela é cheia de estranhos.
Hegel é estranho. Nietzsche é estranho.
Quem lê Hegel e Nietzsche também são estranhos.
Não fale com estranhos. Não fale.
Não fale com tua mãe,
ela é estranha.
Você não a viu nascer,
não conhece os sonhos que ela abandonou,
não a viu desobedecer tua vó quando tinha sete anos
e nem a viu tomar uma surra por isso.
Não fale com estranhos.
Não se apaixone,
não se aproxime de um estranho,
não deixe um estranho te abraçar,
não deixe um estranho te beijar,
não deixe um estranho tocar tua alma.
Não fale com estranhos.
Não discuta no espelho.
Seu reflexo está invertido.
Você é um estranho,
não devia conversar consigo.
Não fale com estranhos.
Pare de prestar atenção no que escrevo.
Eu sou um estranho. Não fale com estranhos.
Não leve a sério o que eu digo.
*
Gripe
A chuva faz rio.
Menino faz barco de
papel no meio-fio.
*
Coruja-buraqueira
Quando criança
eu era uma coruja-buraqueira
com olhos maiores que o cérebro,
com voo que cava o vento,
com as penas e pernas cor de terra
depois de jogar bola no campo.
Hoje em dia eu transpiro e me sujo
quando ambos os olhos
focam o mesmo objeto
e esquecem outra direção:
é preciso girar a cabeça
para ver se gira o mundo,
então escolho entre tomar banho
para ver se me limpo
ou se continuo cavando o chão.
Na maioria das vezes é a segunda opção.
*
Poema-montanha
Alto,
tão alto!
Até Ícaro,
com asas de
cera, parece ser
baixo.
Colossal! Reflexo
de Narciso. Preciso,
impávido, imponente,
provido de suntuosos
adjetivos, criativo, espírito
livre, mais sábio que os livros,
dono de todo o conhecimento
do mundo, patrono e, sobretudo,
morador do topo da montanha, do Alto
lá do início, no topo do poema.
Mas tropeçou pelos versos, caiu com a
testa na quina de alguma palavra que lhe enaltecia.
Foi parar no último verso do poema-montanha.
Ego, um balão cheio de ar que explode e acaba no final da poesia.
*
Surpresa Kafkniana
A vida é uma surpresa kafkniana,
e no copo, no momento,
tem um pequeno peixe em meu café.
O copo vai à boca,
e o peixe, no estômago, nada no meu âmago:
já não sei o que sou, nem por onde ando,
nem sei se a marca fica na estrada
quando a gente finca o pé.
Já não sei por onde andam
aquelas formigas que vi ontem.
Também não sei como conseguem
viver sem nome, sem partido e sem fé.
A terra que exclama
e carrega o peso das montanhas
às vezes vira lama,
às vezes vira cama até.
Eu suponho que os Homo sapiens
sejam bactérias vulcânicas.
O tudo em volta é ebulição
que sai dos poros como chaminé.
Não sei se lutar pela sobrevivência nesse inferno
é o mesmo que tornar-se fogo.
E se faz parte do jogo
fingir ser o que não é.
Não entendo a graça de usar sapatos de brasa para dançar balé.
Não sei o motivo daquela ave.
Voa atrás da semente ou do vento?
É o medo da morte nos genes
que provoca o acasalamento
ou a ave carente quer cafuné?
Não sei. Só sei que a vida é surpresa Kafkniana
que é fria e quente.
Pode ser o mundo do dilúvio
ou o mundo dos presentes:
o mundo de Noel ou o mundo de Noé.
*
A mãe da gente
Queixa-se de dor
quase sempre.
Pontiaguda tempestade
na lombar.
A mãe da gente
trabalha para outra gente
como quem samba
em corda bamba
sem bambear.
Às vezes o dia
é apocalipse
e a noite que engana
é eclipse lunar –
corpo celeste coberto de céu,
de negrume, paraíso alugado
sem ter como arcar.
A mãe da gente
levava no ventre
a gente,
levava no afeto
o feto
sem nem pestanejar.
Dona do samba,
dominadora do vento,
domadora dos tempos,
detentora do mar,
encantadora de pássaros,
voz de acalento,
abraço de almofada,
rainha, milenar.
A mãe da gente
levava no ventre
a gente,
levava no afeto
o feto
e esperava
a situação desapertar.
Mas como dói saber
que o nosso corpo
é carne mole.
Como dói saber
que a vida passa
e perde o paladar.
Quando escurecer
e não ter-te mais comigo,
só ter o meu abismo,
o cisco nos olhos de chorar,
prometo, minha mãe,
que carrego comigo
teu semblante em minha aparência,
teu jeito em minha essência,
tua alma em meu olhar.