Sete poemas de André Galvão
André Galvão, autor dos livros de poemas A Travessia das Eras (Penalux, 2018), Depois do Sonho (Penalux, 2020), Ansiedades: Relatos poéticos de incompletude (Selo Editorial Starling, 2021) e do livro O Coronelismo na Literatura: Espaços de Poder (EDUFRB, 2018). Coautor do livro Redescobrir-se: poesias de fim de século (Selo Editorial Letras da Bahia, 1998). Organizador da antologia poética Deíficos Átimos (Editora EP, 2021). Participou de antologias e revistas literárias no Brasil e em Portugal.
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Muito além de todos os motivos
Porque não cabe etiqueta
Para demarcar esse mundo
Tão adverso, cínico e vil
Que embarga nossos sonhos,
Castra nossas vontades
E afoga nossas expectativas
Porque não cabe definição
Para esse tempo louco
De pessoas desencontradas,
Quando a razão nada vale,
Quando não vale à pena
Ter alguma razão
Porque não cabe saída
Para essa estrada sombria
Em que deitamos nossos pés
Sem luz ou direção a seguir
Enquanto os mais toscos
Tocam orgulhosos seus rojões
Porque não há porquê
Que consiga explicar
O motivo de sonhar
Mesmo quando não há sono,
Quando não há alegria,
Diante de tanto desalento
É que viver é urgente demais pra deixar de lutar.
Publicado no livro Depois do Sonho (Editora Penalux, 2020)
*
Contra o espelho
A dor nos corta por dentro,
sua lâmina fria
arrebata nossos sentidos
E o que resta
depois de tudo?
Amnésia, pavor, suor
Somos beatniks consumistas,
valentes e decididos na estrada,
mas sem carona
pra voltar pra casa
Somos só um arremedo
da fortaleza que arrotamos,
chorando na chuva sozinhos
e sem saber pedir perdão.
Publicado no livro Ansiedades: relatos poéticos de incompletude (Selo Editorial Starling, 2021)
*
O apagador de premissas
As minhas promessas jamais cumpridas
ditam o peso da cruz que carrego.
Quando examino meu tosco caminho
reparo que os raios vêm caindo
diversas vezes no mesmo lugar.
E percebo que, no final das contas,
o grande burro da história sou eu.
Publicado no livro A Travessia das Eras (Editora Penalux, 2018)
*
Reduto
É na noite
que afio os cascos
e disputo corrida
com minhas alucinações
Perdido rincão de silêncio
abalroado por uivos
e pelo som rouco e sutil
do motor da geladeira
É na noite
que depuro meu olhar
e construo laços
com os meus medos
Último reduto de paz
espremido pelo vento
que desarruma afoito
as palavras leves do peito.
Publicado no livro Depois do Sonho (Editora Penalux, 2020)
*
Todas as batalhas
De todas as batalhas
Que já travei,
Perdi muito mais
Do que ganhei
Aprendi a lutar
Comigo mesmo,
Aprendi a perder
Atirando a esmo
E o que restou
Foram esses aprendizados
Que rasgam minha alma
com seus dentes afiados
Hoje o que sou
É um resumo estendido
Do balanço entre sonhos
E derrotas que tenho sofrido
Eis o que essa lida construiu:
Em volta de meus erros constantes
Insculpiram-se em mim
As lições mais importantes.
Publicado no livro Depois do Sonho (Editora Penalux, 2020)
*
Tudo em volta é cidade
Tudo em volta é cidade
até mesmo o silêncio
girando sobre o próprio eixo
depois que os galos nos quintais
decretam a sinfonia do novo dia.
E os carros boleiam o calçamento
esfregando a borracha nas pedras
porque asfalto aqui ainda é pouco
enquanto as filas se formam
nas portas de bancos e repartições
Tudo em volta é cidade
até mesmo o cheiro de mato
que foge das motosseras e machados
pois há cada vez menos árvores
diante do famigerado progresso.
E não há trégua nem mesmo
dos cortantes ventos frios
que maltratam a pele e o coração
daqueles que lutam pra viver
nesse mundo indócil e febril.
Texto Inédito
*
Primeiro de abril
Neste mundo kamikaze
não me arrisco a acreditar em tudo.
Mesmo com tanta fantasia gratuita
a realidade mostra suas cartas,
e o blefe são nossas dúvidas.
Somos apenas o retrato, o espelho
longe de tudo em que acreditamos.
Sobre nós o véu de névoas
que não queremos enxergar.
A vida, cega e tonta,
dança no meio do tiroteio,
esvazia nossos parcos sonhos
e inaugura novas utopias
numa velocidade fast-food.
Somos sempre os últimos a saber
que não sabemos tanto assim.
E enquanto os holofotes desfilam
nas telas encantadas do hoje,
ruminamos ecos insanos e irreais,
dignos da ilusão de Kafka ou Orwell,
mas ainda assim estamos bem.
Então, nem mesmo a mentira
parece ser pior que a verdade.
Nossos sonhos prolixos e imperfeitos
esbarram na ignorância criativa
que herdamos de um mundo vil e sujo.
E deixamos de herança ao futuro
nada do que um dia desejamos pra nós.
Publicado no livro A Travessia das Eras (Editora Penalux, 2018)