Sete poemas de David Assunção
David Assunção é poeta e artista-pesquisador. Licenciado em Letras pela Universidade Jorge Amado-UJ. É autor dos livros “Aparato de Artista – Iluminuras Indestináveis” (Editora independente, 2020) e “Envelope-de-Artista” (Estúdio Arroyo, 2022); tem dois artigos publicados na “Apoena Revista Eletrônica” (ed. 2019 e 20). É capoeirista do grupo de Capoeira Angola Mourão, Bahia.
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(antes de dizer seu nome)
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Um poema se escreve
Em uma noite
Depois das 23h
Ou ainda antes
Deitados em algum lugar
Da casa
Um poema se escreve
Em conversas
A dois
Uma estrofe a cada
Uma hora e meia
Ou mais
Um poema se escreve
Por telefonemas
Áudios
Ou quando esquecemos de
Encerrar completamente a ligação
Um poema se escreve
No cansaço do corpo
No fôlego que chega
Após uma palavra em poesia
Numa tentativa de dizer algo mais estranho
Um poema se escreve
Depois de ouvir sua voz
Depois de horas e horas
Sem dizer muita coisa
Optamos
Antes
Por nos escutar
Um poema se escreve
Em meio a uma pausa
No meio do dia
Ou da noite
Em meio a algo
Que pede mais de nós
E que permitimos que nos tome por um tempo
Um poema se escreve
Também
Em jejum pela manhã
Ou quando
Já deitados,
Resolvemos ir até a janela
O limite máximo para se estar lá fora
Um poema se escreve
Na palavra que encerra
O nosso encontro
Antes do abraço
E do beijo de despedida
Um poema se escreve
Ainda antes
Em que a palavra
Escapa
E, às vezes, não vem
No desejo de escrever
O poema
Essa coisa que fazemos
Por si mesmo
E por nós
Se escreve.
*
De repente, um corpo
De repente, um corpo
Querendo outra coisa
Todo corpo tende a querer
Por processos orgânicos
O modo de se pôr à mostra
Já é outro
Algo que desliza
Como se quis desde antes deslizar
O lado
As oscilações do passo
O peso posto
Na sola, agora, da palma
Das mãos como se pés
Digo: desisti de lutar contra aquele homem
Estendi-lhe a mão e, neste gesto
Um balanço, uma ginga
Um braço que salta, uma trança
O pescoço todo a mostra
Ela diz: não conhecia esse homem
Ela diz: algo saltou para fora
Ele diz: o que veio quis vir
No desequilíbrio desejado
Me parece que mais
Ao tempo da forma
Neste movimento, a terra em mudança
Acolho com entusiasmo –
o que o amigo diz em forma de poema – venha
Ele alerta
Cuidado com o que pede, acontece
O corpo pondo-se em curso de
Desejo, o corpo chegando:
Abre a porta – um outro
Ergue o braço – um outro
No manuseio da palavra – um outro
Senta-se como nunca antes,
Decidimos mudar de rumo:
O início de uma nova era.
*
DESPEDIR-SE-DE
Só agora as palavras.
Depois de ter descido os graus do sono.
Depois de tê-la visto, em sonho, pedir por um gesto.
Um que descasque da vida o acontecimento.
Como se descasca laranja,
Movimentos contornos, numa espiral.
Só agora as palavras,
Depois da experiência do sétimo dia. Expressão que, por diversas vezes, o ofício me pôs a escrever,
Mas, distantes de mim, as palavras não ardiam tanto.
Depois ainda do inseto a pousar no único móvel incerto da sala,
A lembrança dos mínimos saltos do bicho até agora na parede, e do seu voo para longe.
O inseto, sinto eu, era mais que ele mesmo,
em sua cor verde radiante, a saber do que no espectro de luz visível mais me agrada.
As palavras, que agora vieram, trazem o consolo da senhora, com seus retalhos de tecidos antigos.
De onde arranco sua presença, mesmo depois do não estar-mais.
De onde ela faz vir o algo novo: um manto, um colo, uma presença em cores, ela, portanto, testemunha estas e outras redes de palavras que, só agora, vieram.
As palavras, como uma boa senhora, tecem fios com pontos quase soltos.
Em partes, a aproximar-se como querem.
Nada fixo. Ela desobriga até seus filhos de se amarem.
Quem quiser que queira.
As palavras vão indo e vindo por madrugadas silenciosas, deste modo, em pousos e impulsos. Me espera. Vou.
No toque delicado de suas miudezas, em uma e outra superfície, ela me joga uma sensação diferente, a palavra que fica e me vê escrevendo o poema leve.
Algo foi mudando, ao ritmo do que foi aparecendo, as palavras o bicho ela. Em acolhimentos.
Transformando seu peso, seu toque.
E eu que adoro verde, sou tocado.
Sua vida neste toque.
A tudo carícias.
*
HÁ TEMPOS
Estou tentando entender o que
É aceitar o trânsito
Transitar
Com os mecanismos de aceleração e freio
Em funcionamento
Apoiado a experiências anteriores
De fluxos que tive que sair quando
Senti que não dava mais para continuar
Fluxos fortes demais inclusive
E mesmo assim
Mesmo parecendo
Ter uma total atenção
Mesmo estando de algum modo
Acelerando junto
E que agora, me parece,
Que eu
Estava só acelerando
Uma aceleração
Com todas as reações naturais previstas:
Ventos fortes
Frio na barriga
Curvas abertas
Ultra passagens
E mesmo quase sem piscar
Parecendo estar mesmo confiante
Mesmo não estando
Mas mostrando
Pois, numa viagem
Nem tudo é o que parece
Mas é preciso parecer também
Pessoas que passam ao nosso lado
Olham pela janela
E notam
A confiança nos olhos
Por isso melhor é
Mostrar o que pedem que mostre
Ou lhe jogam pro canto
Ou ignoram qualquer sinal que se dá
Por isso finjo estar confiante
Ou isso
Ou vidros escuros demais
Em que nada se vê
Nem mesmo a cor dos olhos
Nem os cabelos
Meio ruivos
A diferença de idade
Nem a confiança.
No entanto
Ainda não tinha como impor
Uma não visão de mim
Então
Estive o tempo todo
À mostra
E nesta de
Ir aparecendo
Fui
De algum modo
Visto demais
Arrastado
Estou sob os escombros
De uma viagem
Talvez
Mais intensa do que
Eu esperasse que fosse.
*
É sobre dar a si mesmo um tempo
Esse verso é uma tentativa de acordar mais cedo
Em meio ao lado do mundo
Para molhar as plantas de casa
Perceber que estão maiores que ontem
Que precisam de nós também
Aqui as palavras estão escritas com calma
Como quem respira e
Escuta o som dos pássaros passarem junto ao teto de casa
Depois de várias tentativas frustradas de acordar e cumprir com os deveres do corpo,
Com os horários dos outros, com os meus
Estou preferindo
Apreciar os corpos da manhã
Aqueles que, acostumados a dormir cedo, desfrutam desse mesmo prazer
Ler uma passagem bíblica como quem procura uma forma de amar diferente
Escrever com inúmeros intervalos e se permitir cansar durante a escrita
Para talvez retomar algum dia
Nesse momento quero poder interromper uma atividade
A dizer coisas boas para a vida
Do tipo:
Acordei com um suspiro profundo hoje, e o primeiro cheiro do dia foi de terra molhada.
Essa escrita é também uma mistura estranha
Da energia do jogo de capoeira
Com a suavidade dos mantras
Uma possibilidade de unir coisas que me fazem bem
Uma escrita assim
É também um susto
Neste caso, são vários
Para cada espanto com o mundo
Um início em poesia
Em que o grito que se dá
No momento mesmo do encontro com a situação assustadora
Tem-se o verso tolhido
O alívio do corpo que precisa
Dispersar as sensações
Que provêm da força do encontro com o desconhecido
Esse modo arranjado de escrever é também um abrigo
Onde pode-se habitar qualquer coisa que queira fazer disso um lugar seu
E como todo abrigo que nasce por necessidade
Ponho aqui nessa forma de dizer e de viver uma despedida também inacabada
Preciso respirar um pouco mais agora.
As plantas que vejo crescem em movimentos circulares.
*
O jeito como a mão
O jeito como a mão
Toca a terra
Como toca
A mão
Uma na outra
Na terra
A mão encontra-se
Toca-se
O que há de terra
O que há
Jeitos
Toques
Uma mão na outra
Usamos a terra
Para jeitos
De
Apalpar a mão
O jeito
O gesto
De quem tenta
Sacudir a terra
Que há
Nas mãos
Que tocam
o jeito
como a mão
Come
É terra
Come
O que há em nós
As mãos
Pegam a outra
Agarram a outra
A terra
A outra
Nossas mãos
Come-a
Como quem come
A terra
Com ela
Feito mão
Comendo
Com o toque
Da mão
Da terra
Feito
ela
*
QUERO IR
Aproveita-se de qualquer coisa
Das que possibilita
e das que impede
Cabe-nos
Esgotar a natureza
Fazer dela o arranjo
O impulso
O sobressalto
E a queda
Aliar-se
À própria ruptura
Se preciso
De tantos momentos ignorados
Fez-se o tempo oportuno
Para sentar e dizer,
O que queríamos
E que não éramos acostumados
Mas que necessitava ser dito.
Fizemos amizade com o novo
Palavras-Momentos.
Fizemos deste
Um momento novo.
E que catástrofe
Pôs pro chão
Uma forma nova
Decaída
Mas que foram tão possíveis
Fomos pesando o braço e doando-nos como apoio.
E se deixando nesse processo
Abrindo as mãos
Mutuamente
Devagarmente
A cada deixa nossa
algo não realizado vai ganhando vida
Outras formas procuram por espaços de abertura para habitar e fazer morada
Estávamos tão acumulados
De coisas não ditas e
Todo corpo tem desejo por expansão
Máquinas que se aliam a outras máquinas e vão se aliando
Para enfim criar
Essa engrenagem desgovernada
É desejo da natureza nossa
Como fomos tão nós mesmos?
Muito nós mesmo
Repetidas vezes
Retomando e retomando
Querendo dar seguimento
Ao que já tinha tomado conta
Pondo nas costas
As bagagens já usadas
Em revezamento
Só agora descarregamos
As malas
Os trajes de antigamente
Tudo isso
Pelo primeiro desejo
Desejo de não-poder
Propor outros critérios
Falar não mais de uma vida inteira
Falar
mas de um lugar diferente
De um modo diferente
Com cortes, talvez
Pronuncia-la, se preciso, incorretamente
É preciso saber repetir
Balbuciar a palavra
Para pôr nela algo novo
A repetição para o acúmulo
Para o desdobramento
E jogar para fora
O grito
A última palavra,
A expressão inteira
Que é a força
Mas só depois
De muito tatear
Passar noites e noites procurando pela letra que se encaixe
Ruminar
Repetidas vezes
E se alimentar desta criação inovadora
Ao invés disso,
Fomos reiterando
A vida já vivida
Os momentos nossos
As viagens, os encontros
Aquilo que já tinha encontrado a sua oportunidade.
É fácil perceber
Todos perceberam
Ficamos falados
Por aquilo que
Nos acostumamos a dizer
Sem o desejo de quebra
De salto
Para este lugar
Apenas relembrado
Mais vale o silêncio,
Foi um pedido novo feito
Já era algo resultante do desmoronamento
Um silêncio que surgiu dos escombros
E no silêncio
Nos distanciamos
Declaramos
Em vez da guerra
A paz
A guerra como o encontro das forças
A paz como a fuga
Fomos cada um pro seu canto
A fim de pensar melhor
Por não ter mais o que dizer
Ou ainda mais
Para dar ao dizer a possibilidade de transformação
Que demanda tempo
Um intervalo necessário
Enquanto isso
Proponho
Mandarmos
Recados.