Sete poemas de Esteban Rodrigues
Esteban Rodrigues, 24. Cria do subúrbio de Salvador. Homem trans, homem negro, homem periférico. Autor da obra Sal a gosto (padê, 2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (paralelo13S, 2021). Participação na coletânea Poemas de Amor e Guerra (Villa Olívia, 2021). Pesquisador de gênero e sexualidade, futuro professor e, não só por amor, escritor.
***
POEMA 1
eu tento evitar
pensar, falar sobre, pensar
eu tenho que parar
com essa ideia
de querer estar
sempre
presente
quando para mim
sobra o às vezes
quando dá
se eu puder
tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic
tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac
tem uma bomba relógio
em contagem regressiva
há um ano e mais algum tempo
em mim
e todo dia eu sinto que vou explodir
esse estado exausto
tem me perseguido e frequentado
esse eu calado
tem gritado
repito
que não escrevo sobre nada
além de mim mesmo
já foram três poemas rasgados
para chegar até aqui
eu estou sozinho e não tenho uma cerveja
tic tac tic tac
tic tac tic tac
tem um choro de criança
na minha janela
e dentro de mim
talvez eu exploda hoje
e não precise lidar
(Com mãos atadas e como quem pisa em ovos, 2021)
*
POEMA 2
eu faço planos sabendo
que não vou realizá-los
porque não tenho tempo
ou dinheiro
ou estou cansado
pensava isso da janela do ônibus
planejando mudar
claro
e, do lado de fora,
a agonia da rotina tirava os velhos de casa
levava as crianças na escola
formava filas nos mercados
travava o trânsito
todos também carregando seus planos
nas sacolas, bancos do carro,
bolsos, costas
a gente tenta arranjar um tempo
para fazer coisas antes que o nosso tempo
acabe
eu faço planos
que talvez eu realize
talvez
eu tenha tempo
e dinheiro
e arranje tempo antes para descansar
como agora
encarando esse pit bull
cheirando as flores
(Com mãos atadas e como quem pisa em ovos, 2021)
*
POEMA 3
parei o livro no quinto ou sexto poema
parei a faculdade
parei de dar ouvidos
parei
e ao silêncio
me rendi
com mãos atadas
e como quem pisa em ovos
meios dias cheios
e vazias madrugadas
no calendário
eu encaro a vida da janela
do quarto do ônibus do quadrado que trabalho
nunca foi sobre paz
e ao silêncio
me rendi
vomitei metáforas
engoli inseguranças
tremi silêncios, devorei teorias
inundado de vinho barato
escovei as lágrimas
e esqueci os dentes
(Com mãos atadas e como quem pisa em ovos, 2021)
*
POEMA 5
adolescentes jogaram álcool
e atearam fogo
em Roberta
viva
eu vou repetir
atearam fogo
em Roberta
viva
o cais de Recife
ambulância
entrada da emergência
leito da UTI
tem o mesmo cheiro
do perfume incendiado de Roberta
até quando será preciso gritar
que a vida de uma travesti
importa
?
até quando será preciso respirar
o cheiro
da carne
queimada
dela
?
se todos os dias se criam mais adolescentes
prontos para atear fogo
existe um sistema de genocídio de corpos trans
que pode ser visto a olho nu
e eu sei que você vê também
eu sei que você vê
eu sei
é um sistema organizado:
o adolescente que ateia fogo
a enfermeira diz que é um homem
o apresentador que afirma: no IML constará masculino
quantas vezes tentaram matar Roberta
nesse poema?
é preciso respirar fundo
mas
o cheiro
o cheiro da carne queimada de Roberta
ainda toma conta de tudo
*
POEMA 6
a hora do avemaria passou a ser uma
hora sagrada
não por crença
mas por hábito
18:00
diariamente
não houve um dia em que eu não
encarasse o mar
às seis em ponto
é como um mantra:
nesta hora
nada
tem
permissão
para
acontecer
é como se
o banco que insiste em não regularizar meu nome
a senhora do prédio que só me chama de querida
o vendedor de churrasquinho da esquina que me encara sempre que passo
não pudessem me alcançar
durante os três minutos de a ve ma ri aaaaa
aaa veee ma riiii aaaa
que toma todo o bairro
hoje
quando alaranjou tudo
e o mar resplandeceu
foi diferente
parecia que a vida estava se afunilando
bem diante dos meus olhos
“eu tenho tido medo”
pensava isso
quando a canção invadiu o apartamento
respirei a salvo
*
POEMA 8
por trás do som
no interior da laringe
as minhas cordas vocais também vieram
no feminino
disforia
silêncio justificado
todo som ecoava feminino
todo ouvido ouvia feminino
todo receptor recebia e respondia no feminino
disforia
silêncio justificado
eu aprendi a falar através da agulha
o injetar do cipionato de testosterona
em toda sua oleosidade
formava letras sílabas palavras textos
diálogos
graves
hoje
falar é liberdade
e o eco da minha poesia
é a minha própria existência
tudo por
quarenta e dois reais
a cada três agulhadas
*
POEMA 9
não chorar não gritar não comentar não reagir não ressentir não demonstrar não acusar não dizer o meu nome não ferir seus valores não beber não fumar não à maconha não à loucura não sucumbir não permitir não expor não aceitar não ter rancor não amar não odiar não sentir não dar as mãos não sorrir não desrespeitar não peitar não responder não encarar não à tudo aquilo que não é dito não exagerar não desistir não pensar demais não guardar pra si não se sentir inseguro frágil mutilado descartável descartado desmerecido invisível inaudível não pisar em ovos não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não chorar não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não não saber mais gritar não querer explodir fugir sumir não se ferir não não não sucumbir não dar ouvidos não dar vexame não dar trabalho não deprimir não à paranóia não vomitar palavrões não ter raiva de si não ter raiva de si não ter raiva de si não ter medo dos outros não ter medo de si não ter medo de si não não não não não não não não não não não chorar não não não não não não não não não não não não chorar não não não não não não não não não não não não chorar não não não não não não não não não criar expectativas não olhar direto pro sol não esquecer de lavar o cabelo não esquecer a senha do banco o dia do lançamento as coisas não escritas a borboleta vermelha as coisas guardadas no fundo do silêncio não repetir aquelas palavras não se culpar não se culpar não se culpar não se culpar não esconder não baixar a cabeça a guarda não ajoelhar antes do horário da oração não abraçar o mundo não tirar da cabeça que ele está no fim.
(Poemas de amor e guerra, 2021)