Seis poemas de Franciliane Alves
Franciliane Alves (1992) nasceu em Manaus/Amazonas. É psicóloga clínica, possui especialização em Psicologia, Clínica Humanista, Fenomenológica e Existencial, pela Universidade de Araraquara (2019). Participou de coletâneas de poesias e contos de editoras distintas. Possui inclinação para temas sensíveis da existência humana. Considera a escrita uma ferramenta de poder, algo transformador e sobretudo terapêutico. A poesia é sua forma de expressão primordial. Participações literárias: Palavra é Arte, livro de poesias, Editora Palavra é Arte (2016); Palavra é Arte – Contos e crônicas, Editora Palavra é Arte (2017); Poeresia, Casa Literária (2018); Quarentena Poética, Editora Ases da Literatura (2021); Microconto de Ouro, Casa Brasileira de Livros (2021). Recentemente lançou sua nova obra, primeiro livro solo, Essa sua melancolia, coletânea de poesias, pela Editora Penalux (2022).
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CUIDADO COM A ALMA DE UM POETA
Ao tocar a alma de um poeta, seja o mais gentil possível,
Poetas são feito passarinhos, flores, como crianças de colo,
São delicados e ao mesmo tempo tão fortes,
Os pássaros são frágeis, mas conseguem levantar voo,
Exploram o céu inteiro, viajam a qualquer hora, não importa a distância,
As flores são tão delicadas, mas exalam um perfume inebriante, enchem o ambiente com um ar agradável,
Algumas flores também têm espinhos, por via das dúvidas, como forma de proteção,
As criancinhas pequenas são frágeis, mas cheias de luz, como anjos de amor,
Quanto às poetisas o cuidado é redobrado,
Seja um verdadeiro cavalheiro, sinta toda sua energia, sinta seu coração,
Encante-se por cada pedacinho de seu corpo, tenha amor, seja realmente carinhoso,
Não esqueça que está diante de uma espécie atípica,
Uma variedade de rosa especial, perfumada, sensível, de coração aberto,
Tenha cuidado com a alma de um poeta,
Cada poeta que existe no mundo foi agraciado com uma metade de anjo,
Se não fosse assim não conseguiriam escrever tantas coisas divinas,
Só mesmo uma conexão com o céu para promover tal feito,
Poetas não são apenas excêntricos, são pessoas elevadas, vivem de amor,
Brincam de existir como anjos de amor.
FEROCIDADE
Já ouvistes falar da mulher selvagem?
Animal “brabo”,
Bicho cheio de coragem,
Passou por três estados,
Já foi bicho solto,
Depois foi domesticado,
E retornou ao estado natural de ser indomado,
Uma loba faminta,
Como se estivesse mantida em cativeiro,
É preciso compensar, matar a fome,
Esse período de domesticação excessiva não foi bom conselheiro,
Como um animal retirado do habitat,
Mulher passiva,
Valentia amortecida,
Natureza selvagem esquecida,
Basta uma única oportunidade,
Diante de mim a liberdade,
Corre em disparada, vai embora,
Instintos à flor da pele,
Não há mais capacidade para viver aqui fora,
A cada esquina uma armadilha, um veneno,
É desse amor que preciso!
Grandeza, nada de sentimento pequeno!
Apetite insaciável,
Mulher indomável,
Fome da alma,
Isso não é amor, é veneno,
É ínfimo, efêmero,
Chega de correr riscos,
Nada de esforços excessivos,
Não seja capturada, subjugada, forçada,
És artista, liberta, esperta,
Não tenha receio, pode criar!
Mulher ousadia,
Essa bravura é a tua cura.
MEU GAROTINHO
O céu enviou seu mais lindo anjo,
Uma força lá de cima cedeu uma fonte inesgotável de sorrisos,
Desce e faz essa gente feliz, ensina o que é amor de verdade,
Vai meu garotinho, sua missão é levar alegria,
Seja forte, meu anjo guerreiro, lá embaixo não é nada fácil,
Sua espécie é boa de briga, terás que lutar desde o primeiro instante de vida,
Confia em mim, pequeno, conhecerás pessoas maravilhosas que cuidarão de ti,
Jamais te deixarei desamparado, enche essa família de luz,
Papai e mamãe já o aguardam, os vovôs já estão pra lá de ansiosos, as tias contentes, imaginando seu rostinho,
Anjinho dourado, proveniente do céu, fica mais um pouco,
O céu cedeu e logo tratou de apropriar-se de ti novamente,
Consolidou-se como anjinho terreno temporariamente,
Agora retornou a sua antiga morada, transcendeu, não se desfez,
Seu corpinho descansa, tranquilo, sereno, sua energia subiu, foi além,
Era tão suave tua companhia, nossas brincadeiras preenchiam os dias,
Não precisava de tanta pressa, podia ter ficado mais um pouco,
Dono de mãozinhas buliçosas, com aspecto de borracha, pequenas, frágeis,
Queria poder ficar só mais uma vez contigo, estou com saudade quando me levava para passear,
Meu garotinho se foi cedo demais, nem brincamos pela última vez,
Partiu com a mesma rapidez que corria pela casa, uma ausência esquisita, ausência preenchida,
Nunca senti um ser tão presente dentro da partida.
A ALMA QUE FUGIU DA MATÉRIA
De tanto sentir adormeci,
Como uma anestesia,
Nada aqui dentro, total apatia,
Chegou um momento que não havia nenhuma emoção, nenhum sentimento,
Nem sequer a tristeza ficou como companhia,
A vida ficou insípida,
Mesmo que tentasse, nada sentia,
Para quem vive do calor dos sentimentos, tal estado de frieza foi semelhante a uma partida,
Chegou a um ponto que senti falta da dor,
Mesmo sendo intensa, quase insuportável, quis que retornasse,
Era uma prova que ainda havia vida,
Não sabia quando era dia, estagnei na noite,
Vagando confusa como um espírito atormentado que não entendeu a desencarnação,
Assemelha-se a confusão,
Difere meu corpo sem alma solto no mundo,
Estive um período como morta viva,
O desencarnado não tem mais matéria para retornar,
Eu tinha matéria, mas não tinha paz.
PRESENÇA
Estou aberta a sua presença,
Traga aquilo que não há lugar,
Cabe um tanto de você dentro de mim,
Do seu jeito assim,
Um encontro genuíno,
Algo raro, fenômeno tão caro,
A reflexão que não machuca,
Sem julgamento,
Legitima o sofrimento,
Presença que compreende, escuta,
Como um presente,
A gente carece de ser compreendido,
Todos nós,
Onde cada aspecto é permitido,
Vivido, sentido,
Dá medo de se abrir,
A intimidade intimida,
Assusta, fragiliza,
Permita ser tocado pela minha presença,
Farei o mesmo,
É um exercício de estar contigo,
É na relação terapêutica que o movimento está contido,
Talvez a gente possa se encontrar,
Há espaço,
E na possibilidade do encontro estabelecer laços,
No espaço terapêutico afetamos e somos afetados,
Tocamos e somos tocados,
Podemos nos transformar,
Sair dois outros desse encontro,
Uma teoria não pode estar entre nós,
Preciso ouvir sua voz,
Na arte do encontro, é possível pela presença do outro ser atravessado,
Esse é o segredo.
RELAÇÃO TERAPÊUTICA
Encontro entre humanos,
Diante do outro é possível reconhecer minha própria humanidade,
Acolhimento, aceitação plena, compreensão,
Sintonia, cumplicidade, confiança,
Não há julgamentos, ideias preestabelecidas, detentor de verdades absolutas,
Não há barreiras, postura distante,
Há o cuidado de tocar uma alma, um gesto de carinho, estar à disposição,
Colocar-se no lugar do outro, considerar o sofrimento,
Poder ajudar e também instigar,
Contribuir para a qualidade de vida,
Não apenas ser reprodutor de técnicas, acima de tudo saber a importância de um toque,
No fim das contas cuidar do outro é uma tarefa árdua,
Desconfio que há um ingrediente secreto para alcançar o êxito,
Talvez uma técnica revolucionária?
Uma cura definitiva para todos os males?
O amor pelo ser humano é capaz de promover a cura,
Somente quem ama o semelhante consegue atingir um nível elevado de doação,
Viver essa verdade é fundamental, não há como dissociar o ser humano do profissional,
É um conjunto de características, amabilidade, bom caráter, integridade, honestidade,
Um bom profissional é constituído de uma boa pessoa,
Sempre acreditei que o amor pudesse transformar o mundo,
Só não tinha a dimensão do poder do amor como cura,
O adoecimento é a fragmentação do ser, são cacos de uma existência,
A gente se quebra e inicia a junção sem perceber,
Todo o cuidado dedicado acaba preenchendo as lacunas,
Tudo aquilo que precisava saber esteve o tempo todo aqui, aguardando quem facilitasse o processo, a hora certa de emergir,
Algumas coisas ainda estão soltas, o importante é que boa parte da casa já foi arrumada,
Verdade seja dita: não há cura mais completa que ser visto e ter a sua humanidade completada no outro.