Sete poemas de Ivete Nenflidio
Ivete Nenflidio (São Bernardo do Campo, 01/11/1973) é pesquisadora das manifestações tradicionais e folclóricas, curadora artística de festivais e gestora cultural desde 1996.
Poeta, contista, cronista e romancista, é autora do romance ficcional Calendas de Março e dos livros de poemas: Memórias Difusas, Cartografias da Saudade, O sereno que habita meus olhos e Ataque – cale-se agora e para sempre. A autora fez sua estreia com o livro de crônicas e contos, País Estrangeiro – memórias de um Brasil profundo. Está finalizando a coletânea Guardadora de memórias com previsão de lançamento para o final de 2022.
Os cinco primeiros poemas integram o livro Ataque – cale-se agora e para sempre e os dois últimos pertencem ao ainda inédito Guardadora de memórias.
***
Incêndio
Na ânsia
de sentir-se notado,
o descomedido e algoz prometido,
ateia fogo na casa.
Ela só pensa em salvar seu gato
e o pobre pássaro macróbio
que padece na gaiola.
As chamas alvoroçadas
parecem dançar,
dar saltos sucessivos
e depois se dissipam,
como fumo escuro,
combustão dos versos tatuados de antigos livros.
Ela abarca a gaiola do pássaro de penas parcas
enquanto
abraça o bichano de bigode queimado
e coração agitado.
Situações improváveis
que não rendem sequer uma mísera metáfora
para se refletir
sobre as perdas ordinárias dos objetos,
essas coisas
suscetíveis à destruição.
Bom mesmo
seria perder a memória,
apagar da mente o incêndio que a persegue todas as noites,
atear fogo às lembranças
do que um dia foi casa.
*
Todas as mulheres
Trago dentro de mim todas as mulheres:
a líder, a esposa,
a santa,
a dama, a puta
“Penhas” sem pernas,
Nossa Senhora,
Pachamama,
Antonieta de Barros,
Violeta Parra,
meninas liberadas para a escola.
Trago dentro de mim todas as mulheres:
as que escreveram no “Bello Sexo”,
as que lutaram nas guerras,
as que sofreram com a fome,
as sufragistas,
as mulheres
quilombolas, indígenas.
Trago dentro de mim todas as mulheres,
as lágrimas
de todas que sofreram com a tortura,
com a violência verbal,
moral e brutal.
Trago dentro de mim todas as mulheres:
Marielle Franco,
Amelinha Teles,
as três mulheres de Barcarena.
No meu corpo,
minhas marcas,
muitas cicatrizes;
o sangue que jorra em mim
é o mesmo
que escorreu torrente em tantas mulheres.
*
Cinema mudo
Ficarás emudecido e, se não falas,
terei que interpretar
o silêncio,
investigando
os trejeitos e o olhar.
Aguardarei, sui generis.
Ficarás quieto,
desejando-me,
como o ramalhete de Astromélias
à espera da seda e do laço
Seguirás desejando-me,
como o mar
à espera de torrentes flumes
e o solo
à espera da mãe-d’água.
Seguirás desejando-me,
como sementes
à espera da embriaguez dos céus,
como o campônio
à espera da boa safra,
como um pobre garoto
à espera da noite de Natal.
E nada mais importará.
Seremos ausência,
o mortório que faz apagar,
momentaneamente,
as tempestades das evitáveis tragédias humanas:
o vírus,
a fome,
toda essa cólera,
esse dia.
*
Triste São Paulo
Racismo disfarçado de ciência,
perseguição camuflada de crescimento,
teorias efêmeras,
meritocratas da elite econômica.
Isso não é um poema,
não é uma homenagem para as terras paulistas,
onde imperaram
os bandeirantes genocidas
e a eugenia.
Crimes cruéis,
despautérios!
Ficaram os netos,
os bisnetos e tataranetos,
ficaram…
Estão por aqui,
semeados na sua elevada hegemonia.
Estado comatoso,
de irracionalidade patente,
broncos como
um tal Lobato,
um tal Renato,
um tal Rochette.
*
Malabares
Observo um jovem malabarista aguardar no sinaleiro,
ele brinca como a criança
do jardim da infância,
joga suas argolas,
pinos e bolas,
vez ou outra
se equilibra em apenas uma roda,
dançando com o vento,
driblando a física;
às vezes come o fogo na falta de alimento,
é um garoto invisível;
ele passa o chapéu,
passa em vão,
passa despercebido
Tem a moça guiando pela primeira vez
que prefere disfarçar,
tem o condutor sisudo no carro blindado,
o motorista do aplicativo
e o menino entregador no transporte surrado,
que de tão suado,
prefere limpar a labuta
e não dividir a gorjeta.
*
Poemas inéditos do livro Guardadora de memórias
Mera filosofia
Tu roubaste todas as minhas palavras,
as miúdas,
as cotidianas,
as difíceis de silabar.
Se tu tivesses roubado apenas as pavorosas,
tristes e hostis,
seria mais fácil lhe perdoar.
Minha boca
ficaria mais doce
e meus lábios benquistos.
Ando muda,
meus ouvidos e dentes
sentem saudade
do teu nome,
nem ele, pude salvar.
*
Tardinha
As crianças vadiavam pelas ruas de pedras,
nada era rarefeito
O pêndulo parava sem distração,
o cuco [obra de talha] descansava seu canto.
Os insetos crepusculares
procuravam suas luzes
e as flores da dama
perfumavam as noites.
Nas vidraças quebradas pela bola de meia,
o vento insistia em assobiar
Os joelhos ralados eram cicatrizados pelo sal,
e os pássaros
silenciavam os gritos
dos homens embrutecidos.
corassis
Parabéns ao Ruído Manifesto ,
Por prestigiar novos poetas
Eu também escrevo,
Como poderia publicar no site?
Patricia C Soares
Que profundo…
“os pássaros silenciavam os gritos dos homens embrutecidos”.
LINDÍSSIMOS E ARREBATADORES.