Sete poemas de Jéssica Regina
Jéssica Regina, 30 anos, mulher preta, mãe, poeta, escritora e palestrante. Graduada em Letra(português/literatura). Ganhadora do 1º Prêmio Dandara e Zumbi dos Palmares na categoria Literatura na cidade de Volta Redonda/RJ. Lancei em março de 2022, meu primeiro livro de poesias “Carne de Luta”, publicado pela Editora Libertinagem. Participo de duas publicações, as antologias “Parem as Máquinas!”, do Selo OffFlip e “Poetas Negras Brasileiras” organizado por Jarid Arraes publicado pela Editora de Cultura.
Foto: Júnior Stornelli
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D.N.A. (Descendência Não Apresentada)
Me disseram que eu vim de lá
Todos os pretos são África
Me contaram como eu vim pra cá
Narra a história da minha diáspora
Mas aqui fiquei sem sobrenome
Em nome do pai do filho e do sinhô
De nada importava saber o meu nome
Mais um preto qualquer da silva e acabou
Falar da sua origem pros amigos é legal
Turco, Alemão, Japonês, Português,…
A história do passado contada sem receio
E se enxergar no mundo sabendo de onde veio
Mas me chamam descendente de escravo
Uma gente vendida pelo brilho nos dentes
Árvore genealógica no gueto é mato
Não interessa dizer que África é continente
Fomos mais de 4 milhões de pretos traficados
Somos Bantos, Ashantis, Mandingas, Malês,…
Pelos mais de 100 milhões de negros enganados
Eu pergunto: “Quem sou eu? Quem é você?”
*
A PRETA QUE SOU
Me olhei no espelho
e me vi preta!
Não era a primeira vez
mas nunca antes desta cor
Me olhei no espelho
me vi negra!
Do jeito que não cresci
Com o cabelo que nasci
Me olhei no espelho
e me descobri
Com um padrão novo
De uma imagem ancestral
Me olhei no espelho
e sorri
Minha beleza é de Ouro
Negro é meu tesouro
Me olhei no espelho
Nunca mais igual
Minha carne é de luta
Não de carnaval
Me olhei no espelho
e a princesa era eu…
Não loira, não lisa, não magra
Nem branca, nem santa, nem fada
*
TODAS AS CORES DE PRETA
Mulher de cor?
Sou de todas as cores!
Sou de todas as cores que me pintam
Sou de todas as cores que me pinto de amor
Pintaram-me negra!
Criola, macaca, mulata, globeleza
Pintaram-me bunda
Pintaram-me com as cores do açoite
Sangue, suor, saliva, esperma
Cor da noite, dentes fortes, cabelo duro
Penteia, alisa, corta, cacheia
Pintaram-me feia
Baiana, africana, macumbeira, exótica
Pintaram-me cada um a sua ótica
Morena, escurinha, não preta
Pintaram-me
E pintei-me
Com as cores da ousadia negra
Com as cores que sempre me couberam
Com as cores que nunca me pintaram
Pintei cabelo, boca e fala
Crespa assumida não mais escondida
Consciência, poder e beleza!
Pintei-me de África Mãe
Dandara, Tereza, N’zinga
Pintei-me África Viva
Congo, Ndongo, Benguela
Pintei-me em estampas,tecidos e formas
Verde, vermelho, amarelo
Pintei-me em inspiração ancestral
Tatuagem sobre a pele
Pintei-me em arte, música e dança
Vibrei ao som das batidas da terra
Pintei-me do couro do tambor
Pintei-me do ouro
Pintei-me negra
Gritaram! Gritei!
Briguei! Calaram.
Não me calaram.
Não calarão.
Não apagarão
O negro em preto e branco
Sou preta
Sou negra de todas as cores.
De todos os tons
Sou todas as cores.
Sou todas as pretas.
*
UM GRITO DE ÁGUA
Água?
Vida!
Quem mandou você meter a mão?!
Água fonte de destruição…
Culpa da água?
Da água não!
Água na boca, água na bica
Água que não tá boa
Água desceu
Boca secou
Bica fechou
Água subiu
Ponte sumiu
Ninguém viu
Água…
Salgada no choro do sertanejo
Cansada no suor do ribeirinho
Rara que não cai do céu
Cara quando enlatada
Água no teto,
na poça no chão
Infiltração
Água na terra seca
Que não encharca
Matando o gado
Água que arrasta o barranco
Desfaz o encanto
e desmonta o barraco
Água na fonte
Cartaz do seu comício
Desperdício
Água que é o início
Fez-se dela o fim
O seu sim que fez o não!
Quem mandou você meter a mão?!
*
PRECE À MÃE.
Não sofra Mãe
Já percorremos esse caminho outrora
Nos porões úmidos e doentes
Ao som de dor e morte
Com odor de sal e sangue
Atravessamos mata, matagal e cafezal
Mãe preta
Mastigamos sem saliva o adeus a quem ficou
Mastigamos a folha seca da terra que ficou antes do
mar
Engolimos a fome de noites infinitas
Engolimos toda história silenciada
Não se desespere mãe!
O que é nosso nunca foi coisa
Nosso nunca foi de se acorrentar
Nem de se afogar
Ou sufocar
Respire mais uma vez
Pois nosso é tudo o que sentimos
Nosso é tudo que aprendemos sem sala de aula
É tudo que sabemos ao fechar os olhos
e ao abrir os ouvidos de dentro
Olhe pra tudo de novo Mãe Preta
Olhe pra saia rasgada que boneca foi
Olha pro leite negado que pro branco foi
Olha pra cria subtraída pela tortura
Pra cria que foi só sua
E sua não foi no contrato
Mãe preta seu nome
É de todas as mães que amassaram esse chão maldito
Toda mão de preto que colheu o algodão branco
Todos as rainhas e reis que perderam o reino
Seu nome é que ecoa na batida dura da mão sobre o
couro
Seu nome é que chamamos na hora de dor
Seu nome é que chamamos quando pensamos amor
Mãezinha
Nada tem de menor
Nada diminutivo
A grande gestora
Genitora
A genética
E a gênese
Mãezinha
Grande
A grande saia, grande asa, grande abraço
Olha pra mim mãe preta
Quanto morro eu já subi
Lágrima sozinha espalhada na fronha
Contigo aprendi a parir
Filho no colo, filho nas costas
Filho nos braços
Chegando e saindo
Quanto filho perdido
Filho arrastado, filho amarrado
Crescendo e correndo
Quero ver filho voando Mãe!
Quero ser de ti minha Mãe!
Quero ser tua filha a voar!
*
BAILE
Dancei
Entrelaçando minha perna nas tuas, dancei
Subi e desci
Fazendo do atrito faísca
Do calor suor
Dancei
Minhas mãos em ondas sobre tuas largas costas
E as unhas escreveram a partitura
Dancei língua em teu pescoço e orelhas
Molhando o som
Te cantei segredos de prazer
E me cantaste gemidos
No último ato
Me agarrei a teus cabelos crespos
Pretos como tu
E eu
Mordi teus lábios grossos
E beijando-te sedenta
Te entreguei meu corpo
E assim me conduziste
No mais sensual balé negro
Que aquelas paredes aplaudiram
*
Agoniza… (inédito)
Agoniza…
Quem é que morre no final desta história?
Morre a nossa saúde, morre a nossa fé?
A esperança já abandonou o barco e saiu pela porta dos fundos no último trimestre.
A dignidade não sobreviveu à chegada de 2019.
Agoniza…e morre sim!
Morrem 450 mil, morre o pai, a mãe e a filha de 33,
morre a prima, o tio e o bisavô de 96.
Morre a família, morre o bebê, morre a gestante, morre a médica, o enfermeiro e o
estudante. Morre o guarda, o policial e o professor,
morre o político, o artista e o camelô.
Morre sim!
Morre a ciência desnutrida carregando a vacina nas costas com suas pernas cada vez mais
curtas,
levado socos de todos os lados enquanto caminha na corda bamba de sombrinha.
Morre mais um brasileiro no corredor do hospital.
Morre mais uma criança por bala perdida.
Morre mais um ser humano com frio debaixo do viaduto.
Morre a educação que liberta mulheres e homens.
Morre um título de eleitor que já nem sabe pra quê existiu!
Ainda acreditamos que alguém vem nos socorrer. Sinto dizer, mas não vem não.
Nós amargamos o conformismo revoltado de quem acredita que Deus vem nos socorrer,
mas ele já viu tudo, ele está vendo
e para muitos, Ele viu o antes e já viu o depois. Também não são os bons que irão se
salvar, estes estão morrendo e nos deixando aqui para sermos seres humanos cada vez
piores, cheios de ódio ou de indiferença.
Deus sabe o que faz, não é mesmo?
Aqui, o socorro não virá do alto, mas da terra onde o povo habita, então, dai a Cesar o que
é de Cesar.
O escárnio em que se transformou este país é uma doença altamente transmissível, mais
letal que qualquer nova cepa de um vírus antigo.
É uma doença que corrói como ferrugem as estruturas firmes que levaram décadas para se
consolidar e que cairão sem tempo para remendos.
Essa enorme chaga escancarada que é a calamidade social que vivemos só incomoda
aqueles que tem olhos de ver, para os demais é algo tão bonito e admirável quanto a roupa
nova do rei.
Mesmo sem tempo pro luto ainda temos muitas lágrimas a chorar e o suspiro derradeiro já
foi dado vezes demais.
Somos todos nós um Sargento sofrendo com a violência do capitão?
Maria da Graça Rios
Continuo
Boquiaberta, ante a beieza e a qualidade dos trabalho LITERÁRIOS apresentados..
Obrigada.