Sete poemas de Zainne Lima
Zainne Lima da Silva (1994) é de Taboão da Serra, zona metropolitana de São Paulo. Bacharela e licencianda em Letras pela FFLCH-USP. É arte-educadora literária, escritora, poeta, revisora, pesquisadora e professora no ensino básico. Autora de Pequenas ficções de memória (Ed. Patuá), de Canções para desacordar os homens (e-book independente) e de Pedra sobre pedra (Ed. Popular Venas Abiertas). Mais recentemente, recebeu o Prêmio Malê de Literatura para jovens escritores negros e menção honrosa no 19º Prêmio Paulo Setúbal, promovido pela prefeitura de Tatuí-SP.
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BENVIRANÇA
sim, é para isto que eu escrevo
para que você reconheça o sangue de barata
que atrofiou tuas veias após décadas de trabalho
para que retorne à tua própria criança
e redescubra o choro de frustração
para que nomeie dor, felicidade e prazer
sem as garras de águia da autocensura
para que veja lágrimas caindo de teu rosto
antes que sejam valoradas em sal
nos quintos dias úteis dos meses de cada ano
para que pense, ao invés de clamar à morte
em escrever um pequeno poema
para que alcance o plexo solar tão logo cerre os olhos
para distribuir a água nas mãos dos hipotálamos
para que saiba em minúcia o significado de eterno
e até de incomensurável
mas acima disso
e primeiramente
para que você consiga experimentar
a vida contida numa panela de feijão brasileiro.
EU ERA A CARNE
(Para Neide Almeida)
a palavra
reluzente navalha, eu afio
como minha avó
à sua peixeira de baiana:
na saliva burilada
de minha própria língua.
*
SEM TÍTULO
a poesia é
um ente querido
quase venerado
a quem você ergueria um altar
e muitos louvores
um ente que te conhece
tão profundamente
que parece ter te moldado
em massinha de biscuit
um ente já velho
de quem você vigia a respiração
de minuto em minuto
com medo de que ela cesse
e não haja mais você
sem o ente venerado
já velho
quase morto.
*
SEM TÍTULO
algo da poesia da Alocasia
entra em dormência dentro de mim
é lindo e saudável mas finge que morre
e eu, enlutada, continuo regando e expondo à luz
prolongando adeuses para que, de repente
em uma madrugada nebulosa, perceba
uma folha enrolada em si mesma despontando do vaso
como uma recém nascida conhece
primeiramente a existência de um deus
no seio mole de sua mãe.
*
ז
(Para Oluwa Seyi)
diz alguma simbologia tradicional
que meu nascimento, zain
representa uma espada e sua guerra
no entanto, se feri algum leitor
com meu livro entre as mãos
foi por mero encontro com a verdade
jamais quis derramar sangue
se provoquei cortes
(dedo na aresta do papel)
foi por negligenciar o dizer
que a minha literatura
é um mosaico de espelhos afiados
sobre o chão de toda a cidade.
*
PRESCRIÇÃO PARA A OURIVESARIA
(Para Dalva Maria Soares)
antes
sentir quanto pesa a pedra sobre o peito
a pressão que promove contra as costelas
circundar sua massa amorfa
estudar como é possível respirar
com tamanho estanque encima do tórax
conviver com a pedra
saber ser pedra com a pedra
finalmente, pingar choro
contínuo talvez ininterrupto
sobre toda a pedra
perceber a pedra se despir da pedra
reconhecer o que há dentro da pedra
como dar à luz uma beleza preciosa
sem compreender sua brutalidade?
*
SEM TÍTULO
não vou encomendar à costureira o remendo deste amor
que é um moletom com cheiro de naftalina
não vou mergulhar nas lembranças lilases
como quem busca o peixe elétrico plena luz do luar
não vou associar os fios da barba que crescia irreverente em teu rosto
com a poeira que se acumula debaixo de minha vassoura
tu nunca fizeste algo realmente significante que não me aconchegar nos teus braços
e me fazer dormir como se eu fosse a mais pequena das mulheres deste mundo
nem jamais escreveste uma palavra que fizesse um tal som que preenchesse este silêncio de coisa morta, Pedro
mármore escarrado da minha pia de enxaguar saudades.