Sete textos de Beatriz Malcher
Beatriz Malcher escreve, pesquisa e ensina literatura. Se doutorou em Teoria Literária e compôs a sexta turma do Núcleo de Dramaturgia FIRJAN/SESI (2020), onde escreveu a peça “Onde está Liz dos Santos” (2020) e a dramaturgia “Carro Alegórico” (Hecatombe, 2021). É autora das plaquetes de poesia “o álbum dos carros” (Primata, no prelo), “lembranças dos acidentes que não sofri” (edição própria, 2022) e do anti-manifesto “só me interessa aquilo que já não sei” (Urutau, no prelo). Mora no Rio de Janeiro com uma cachorra chamada Baleia.
arte poética
geralmente escrevo
e faço bolos
mas prefiro fazer bolos
gosto de fazer bolos
com cuidado calma
misturar o açúcar com as gemas
gosto de ver o açúcar mudar de cor
de sentir na ponta da colher a textura
da massa quando coloco óleo
farinha leite chocolate
gosto de bater as claras em neve
com o garfo de ver crescer a espuma
de medir a quantidade de fermento de
untar a forma que dá forma no forno
de escorrer a massa de lamber o que sobrou
na colher na tigela de sentir dor
de estômago de lambuzar a cara
os cílios a sobrancelha o cabelo
gosto de ficar açucarada
e torcer para que as formigas
me ataquem
geralmente escrevo e
faço bolos
gosto de fazer bolos
e depois esquecê-los
queimando no forno
enquanto sou levada pelas formigas
algumas coisas que beatriz não conseguiu falar praquele homem paleolítico
acontece em certas noites
quando deito no colchão
densidade 33
no travesseiro 100%
látex toda segunda
quando a carne do
futuro é entregue
na minha porta toda quinta
quando converso por vídeo
com o outro lado do oceano
toda vez que lembro
que demoraria oito ou doze
horas para atravessar
o oceano dia sim dia não
quando o vento rompe a cortina
e vem um tédio
fácil e bom
meu privilégio maior
é quando lembro de você
e penso
tudo está melhor
aqui
onde estou
mas daí vem, uma coisa
meio assim de saber
que pra ter colchão travesseiro
porta tédio tem gente vivendo
sem teto e sem caverna
também vem um troço meio sei lá
de sentir cansaço
das caras que passam
pelas telas preguiça
dos corpos que brilham
nas telas angústia
de me ver e vender
nas telas
e vem um tédio
difícil e ruim
meu inferno maior
é quando lembro de você
e penso
tudo está pior
aqui
onde estou
mas daí vêm as imagens
primeiras: a selfie milenar
das suas mãos eternizadas
na parede ou você e seus colegas
flechando uma gangue rival
e os instantâneos daquela festa
onde um bisão se deitou sobre
uma mulher sem nome que
gritava esperneava sangrava
enquanto os homens – você seu pai
seus tios seus amigos e inimigos –
dançavam festejando o milagre
do acasalamento
quando lembro de você
penso
que estamos
aqui
no mesmo lugar
a vida da atriz
não me apresento como poeta
nem professora crítica dramaturga
não tenho prazer no trabalho
nem me apresento como filha neta
sobrinha parente de sei la que homem
não sou mãe nem quero ser mas
se me acontecer uma criança
tudo bem não vou reclamar
não me apresento solteira casada
divorciada ex corna amante
não sei bem me dizer
sei que sou isso aqui e o que não deu
não fui
*
amo que me chamem de beatriz
sem apelido sem sobrenome
só beatriz parece literário – e é
amo que me chamem beatriz
mas odeio que me busquem no paraíso
e já cansei de resgatar gente do purgatório
amo que me chamem beatriz
mas não me citem dante shakespeare
o conto do borges a tal música do chico
*
sim sou triste e o contrário
não moro no sétimo céu
já despenquei de lá faz tempo
pediram bis – e dei –
não rimo meu nome
mas sou meio atriz,
veja bem:
amo que me chamem de beatriz
e amo mais ainda sair por aí
testando nomes
amo ser madalena doralice jéssica nunca
fui adília já pensei em ser maria
josé como a poeta e minha avó
amo o som da voz de alguém que não amo
me chamando de clarice virgínia sophia
amo voltar aos vinte e seis avançar pros trinta e oito
e ouvir alguém dizer “nossa, cecília,
como você está conservada!”
amo explicar que tenho quarenta e dois anos e
pareço trinta e três porque sou helena cirurgiã
plástica marília dermatologista capitolina esteticista
amo beijar bocas de gente que me chama de pina agnès nina
amo profundamente quem se apaixona
pelo meu talento como pintora pelo
meu amor ao violoncelo pelo meu brevê
pelo meu jeito com números
*
não me apresento como poeta
me apresento como ana paula natasha
ana júlia lígia maria luiza
e se alguém me dedica uma canção
eu não ligo –
canto junto,
faço coro
a vida da atriz II
a vida da atriz II
Programa performativo
- Uma vez por dia, conversar com algum desconhecido – no metrô, no ônibus, na academia, não importa – como se você fosse uma outra pessoa. Se dar um nome, uma idade, um trabalho, uma profissão.
- Se inscrever em cursos – de áreas aleatórias e distantes dos seus interesses pessoais – como se você fosse outra pessoa, com outro nome, data de nascimento e endereço.
- Arranjar urgentemente alguma forma de ganhar dinheiro para as próximas etapas.
- Comprar um pacote de viagem, de preferência daquelas excursões em grupo ou pra alguma espécie de retiro, e passar trinta dias seguidos fingindo e se comportando como outra pessoa.
- Deletar todas as suas contas de redes sociais e criar novos perfis, com um novo nome, nova identidade, novos hobbies, novo trabalho.
- Convencer todos os seus amigos e conhecidos que Beatriz Malcher sempre foi uma identidade falsa, que você estava há 30 anos num programa de proteção à testemunha, que agora você está livre e que seu verdadeiro nome é o tal das redes sociais.
- Fazer um currículo fake e providenciar com alguém carteira de motorista, passaporte e diplomas falsos – o Heyk e a Laurinha têm cara de conhecer gente que pode arranjar isso pra você.
- Em uma quarta-feira, convidar os amigos da época da escola para irem pra sua casa na sexta-feira, marcar uma cerveja com os poetas no sábado, confirmar presença no almoço de família do domingo, agendar uma consulta com o clínico geral na segunda.
- Na quinta-feira, deixar o estado. Se possível, o país.
- Arrumar um emprego com a identidade, o diploma e o currículo falso.
- Ir para uma festa, bar, café, ou qualquer ambiente frequentando por pessoas que jamais te atrairiam – como essa gente que gosta de falar de investimentos ou que tem cara de ex-BBB.
- Fingir atração por algum homem.
- Beijar esse homem.
- Se fazer de difícil.
- Trocar contato.
- Marcar um segundo encontro.
- Fingir se interessar pelas mesmas coisas.
- Marcar um terceiro encontro.
- Transar
- Fingir prazer.
- Fingir afeto.
- Fingir amor.
- Morar junto.
- Adotar um gato.
- Casar
- Engravidar
- Ter um filho.
- Fingir amizade com os vizinhos.
- Adotar uma salamandra.
- Ter outro filho.
- Construir uma casa.
- Ter mais um filho.
- Criar um jardim.
- Brigar com a sogra.
- Adotar uma tartaruga.
- Ter um caso com o cunhado.
- Esperar que se passem exatos 16 anos da sua data de chegada.
- Abandonar tudo, menos os bichos.
- Numa sexta-feira, voltar para o Rio de Janeiro, com o gato, a tartaruga e salamandra.
- Recuperar a identidade antiga. Voltar a ser Beatriz Malcher.
- Na própria sexta-feira, ligar para os amigos da época da escola e agir com naturalidade. Perguntar: “e aí, vocês virão aqui pra casa hoje, né?”. E quando eles falarem que você sumiu, que você está anos atrasada, que metade do grupo já se mudou ou morreu ou simplesmente te odeia, você responde: “Acho que não, hein… Acho que vocês estão enganados.”
- No sábado, fazer o mesmo com os amigos da poesia.
- No domingo, fazer o mesmo com o que restou da família.
- Na segunda-feira, ir no clínico geral e demandar ser atendida no horário do agendamento.
- Na terça-feira, começar a terapia.
*
antígona, minha irmã
sei que devo respeito
aos mortos que só
a terra oprime
devo respeito apenas
aos mortos
os mortos
com quem vou morar
por muito tempo
se eu morrer
um dia
não se engane, minha irmã
dos vivos também desconfio
e aos vivos, pergunto: se vivem
o que fizeram de tão errado
para estarem
vivos
vivos ainda
numa terra que só faz
morrer?
eu também confesso tudo
minha irmã
não nego coisa alguma:
dos vivos desconfio
e viva desconfio
de mim
até mesmo
de mim
se vivo
também devo ter sido
constrangida
por minha sanidade
e prudência
e devo
por obediência
ter arriscado o castigo
das deusas
para satisfazer o orgulho
de um rei
*
algumas coisas que beatriz conseguiu falar praquela mulher paleolítica
agora penso em
criar uma tinta
que resista à água, ao sal, ao tempo
e produzir também a imagem
da minha mão
nas paredes deste apartamento
e quando o rio for a cidade submersa
que a canção prometeu
uma cidade submersa
dentre tantas outras
quando eu for não mais que
uma mão na parede
dentre tantas outras
e vierem explorar o que
um dia foi esse apartamento
talvez vejam essas mãos
que ajudaram a afundar
o mundo
e digam
: alguém morou
aqui
alguém amou
aqui
alguém sofreu
aqui
daqui
alguém desapareceu
*
pensar uma revolução depois da revolução
Agora, Aqui
onde o silêncio já tem
voz corpo nome
onde o que fala só
diz interrogações onde
enxergamos o que é pequeno
para ser visto
Aqui, Agora
são sempre muitas outras
horas que não essa
muitos outros lugares
além desse
Agora, Aqui
já somos todos
desimportantes e não queremos
respostas
Aqui, Agora
já passamos ainda viremos
seremos e fomos o que
não somos e
quem não pudemos ser
aqui é agora
é sempre é nunca
é Quase
aqui
o tempo é breve
e não termina
agora