Sistas Grrrl’s Riot: narrativa de mulheres negras no punk rock – Por Daisy Serena
“a diáspora é um coração-quilombo” é coluna reservada à artista multidisciplinar Daisy Serena.
A coluna tem como proposta uma abertura para as mais distintas expressões artísticas (às vezes a palavra, noutras as artes visuais, em outros momentos o audiovisual).
Entrevistas, críticas, o diálogo entre poéticas, entre visuais – e muito mais – formarão a coluna, que irá ao ar sempre na última segunda-feira do mês.
Daisy Serena sobre “a diáspora é um coração-quilombo”: “é um título especial pra mim (…) que diz sobre tudo que me atravessa como pessoa e artista preta na diáspora”.
Daisy Serena (São Paulo, 1988).
Artista visual e escritora com estudos em Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Autora de Tautologias (poesia, Padê Editorial, 2016). Tem poemas publicados em revistas digitais como Escamandro e Chão da Feira.
Como artista visual teve sua estréia solo com a exposição: Tecituras de Tempo & Identidade (Mostra de Criadoras em Moda: Mulheres Afro-latinas, no Sesc Interlagos, 2016) . Também participou das exposições coletivas FotoPreta (2018 e 2020) com curadoria do coletivo Afrotometria. Tem obras de diferentes linguagens visuais publicadas em revistas digitais como Menelick 2º Ato, Garupa e Doek! (Namíbia).
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Sistas Grrrl’s Riot: nnarrativa de mulheres negras no punk rock
“Eu não sou uma ‘punk negra’.
Eu sou negra e gosto de punk”
Tasha Fierce
“eles queriam a gente entre a cruz e a espada
mas quando uma preta encruzilha sua palavra
alafia o caminho de todo povo preto na diáspora”
tatiana nascimento
“Existe na linguagem de todos os movimentos que estão supostamente
preocupados em eliminar a opressão sexista,
a atitude sexista-racista em relação às mulheres negras”
bell hooks
Foi em 2017 que fiz um curso com a imensa Ana Maria Gonçalves chamado “racismo e seus afetos”. Durante uma semana ficamos imerses em outras possibilidades de referências e narrativas que Ana Maria nos trouxe, entre elas a importância pessoal que teve em se reconhecer uma Sista enquanto vivia em New Orleans. Foi em maio de 2017 caí em um artigo americano sobre o movimento Sistas Grrrl’s Riot. Desses encontros minha cabeça-coração tornou-se um vulcão.
Na época procurei artigos em português que desdobrassem o movimento e não encontrei. Empolgada e imersa na voz de Poly Styrene escrevi um algo-afetivo que deixei nos recônditos de um blogue pessoal. Esses dias resolvi fazer uma nova pesquisa e encontrei um artigo com um caráter jornalístico/documental muito interessante, de Tânia Seles. Pensando no múltiplo das nossas vozes resolvi resgatar e revisar meu pequeno ensaio-afetivo da menina preta que cresceu no interior de são paulo e se apaixonou por punk rock na adolescência.
Eu tinha quinze anos: menina negra de cabelo alisado em São José dos Campos, maior cidade do Vale do Paraíba, também muito industrial e militarizada (com focos importantes de resistência, como o jongo, mas bastante invisibilizadas para a população. Eu mesma só fui ter conhecimento e contato com essa parte quando me mudei para São Paulo, capital). Era a única, ou quase única, menina negra na maior parte dos grupinhos dos quais fazia parte. Adentrei a adolescência numa fase mergulhada nas bandas do movimento punk Riot Grrrl. O hino de Bikini Kill (banda formada em 1990, em Washington) “rebel girl you’re the queen of my world” também foi o meu. Havia algo novo e bonito ao olhar outras mulheres com uma admiração de contranarrativa do patriarcado, algo poderoso em outros tons e outros corpos numa cena majoritariamente masculina.
O movimento Riot Grrrl também é associado à terceira onda feminista do início dos anos 90, “nascido da frustração com a sociedade e cena musicial que reforçava a ideia que, como o Manifesto Riot Grrrl diz, ‘Garota=estúpida’, Garota=ruim’, ‘Garota=fraca'” (Gabby Bess)”. Impuseram-se politicamente através de seus zines, spoken words e músicas. Entre as mais conhecidas figuram bandas como L7, Babes in Toyland e Dominatrix.
Há muita importância em relembrar que “punk rock não é só para o seu namorado” (Bulimia, 1998/DF), mas, aqui queria falar de outro recorte, aquele que é sistematicamente sublimado, aquele em que nós, mulheres negras, protagonizamos. Esta é uma breve narrativa afetiva sobre ter de lidar, em todas instâncias, com a dupla discriminação sexista-racista (e tripla, considerando classe).
Dezenove anos atrás isso não era uma questão pra mim; menina negra forjada no interior de São Paulo sem consciência de sua própria negritude e que não teve contato com conteúdos que promovessem o debate racial. Hoje, no entanto, não é possível passar sem um tremendo desconforto. O fato é que estive relembrando essas bandas por ter descoberto o documentário – “The Punk Singer” (2013) – retratando um bocado da vida de Kathleen Hanna (Bikini Kill / Le Tigre), tida como precursora do movimento, e fiquei encucada com a mesma velha questão: onde estamos nós?
O impulso de curiosidade, e alguma centelha de esperança, me fez pesquisar informações e/ou artigos sobre bandas do movimento Riot Grrl formadas por mulheres negras ou da qual fizéssemos parte. Não foi com grande surpresa, mas a mesma velha decepção, que nada relevante apareceu.
Para não dizer que não há nada, existe um artigo – muito competente – postado no Broadly Vice, escrito pela poeta e artista multimídia afro-americana Gabby Bess – “Alternativas para as alternativas: as garotas negras ignoradas pelo riot grrrl” – onde ela inicia justamente trazendo um incômodo similar ao meu. Diante de uma publicação da Universidade de Nova York: uma coleção chamada Riot Grrrl, com os zines, diários, memórias do movimento, ela encontra apenas uma mulher negra – Ramdasha Bikceem “a amiga negra das Riot Grrrl” (algo parecido com as amigas negras das protagonistas de séries e filmes que nos atravessaram dos 90’s pra cá).
Bess desfia essa história em busca de outras das nossas, fala da importância do conteúdo de Bikceem, que não se furtava a fazer críticas em seu Zine, o “Gunk”, da falta de interseccionalidade dentro do movimento.
Bess parte do zine para a cena musical, especificamente, com a missão política de trazer a voz daquelas que foram (e ainda são) invisibilizadas, as que fogem da descrição tida como comum no Riot Grrrl “jovem, branca, suburbana e de classe média”. Ela diz, “em contraste com essa rígida narrativa do Riot Grrl branco, mulheres negras participaram, sim, do movimento. Poucas e distantes entre si, mas, todavia, elas participaram e merecem mais do que serem colocadas embaixo do tapete da branquitude”.
Assim pude conhecer Tamar-Kali Brown, Honeychild Coleman, Maya Glick e Simi Stone, precursoras do que viria a ser o movimento Sista Grrrl Riot, condensado em uma série de eventos onde mulheres negras – banda ou solo – apresentariam sua música, sua voz, sua narrativa. Bess entrevista essas mulheres que falam sobre a falta de representatividade (palavra hoje um tanto esvaziada, ou não suficiente, mas que ainda assim não podemos negar a importância de múltiplos espelhos para uma menina negra poder criar um imaginário de si em outras possibilidades de existência), da emoção de encontrar outra Sista da música e do punk, de como nunca tinham tocado para tantas pessoas negras até o evento feito por elas mesmas.
Uma frase do artigo “afinal rock music é black music” me lembrou outro artigo muitíssimo bom, do Jun Alcantara – “Por que precisamos provar que a música negra é negra?”, que perpassa vários estilos onde músicos negros foram os precursores – dentre os quais, a banda preta de hardcore / punk Bad Brains (assim como Pure Hell, que é ainda anterior) – mas que não tiveram a mesma notoriedade que músicos brancos por uma questão racista estrutural e mercadológica.
Penso ainda em contexto nacional, onde a mulher negra foi construída no imaginário (como bem disse Lélia Gonzalez) para ser “mulata”; “mucama” ou “mãe preta”, quem diria de outros possíveis recortes nos anos 90? mulher, negra, feminista… punk?
A falta de comprometimento efetivo das mulheres brancas do movimento Riot Grrrl além de ter corroborado com a permanência desses imaginários, também contradiz um dos pontos de seu próprio manifesto onde: “PORQUE fazendo/lendo/vendo/ouvindo coisas legais que validam e nos desafiam podem nos ajudar a ganhar força e senso de comunidade que nós precisamos, para entender como merdas como racismo, capacitismo, etarismo, especismo, classicismo, padrões de beleza, sexismo, anti-semitismo e heterosexismo funcionam em nossas vidas.”. Já que, como Bikceem coloca: como desejam discutir racismo em uma sala onde quase não se tem mulheres negras?
Retomando o novelo da memória, da adolescência, dos festivais punks em São José dos Campos no começo dos anos 2000, sempre é mais latente a lembrança da única mulher negra, integrante da banda Cólica, destruindo na bateria.
Colocar palavra e aprofundar olhares para esse (e outros tantos) movimentos onde nossos corpos pretos são à frente em potência (e não na reverberação violenta, cansativa, repetitiva da colonialidade) é praticar também o que minha irmã Nathalia Grilo chama de imaginação radical negra. Seu compromisso com o assombro da vida, com a criatividade, com não se render à inércia esperada pelo racismo invisibilizador. É trazer a verve de Toni Morrison quando diz “nós fazemos linguagem. Essa pode ser a medida de nossas vidas.” e fazer linguagem é, sobretudo, autonomear e existir.
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Algumas das minhas preferidas:
Fancy Rosy (1977)
https://www.youtube.com/watch?v=-6G73C8lmow
Poly Styrene (X-Ray Spex) ( 1978)
https://www.youtube.com/watch?v=AqdeoxwyvKk
Yvonne Ducksworth (Jingo de Lunch) (1989)
https://www.youtube.com/watch?v=7obII4NHr9Y
Tamar-Kali Brown (2010)
https://tamar-kali.bandcamp.com/album/black-bottom
Big Joanie (2013)
https://www.youtube.com/watchv=uIYo1okOm9U&list=OLAK5uy_nYZNlunm3G2ySlzOQfvOoqxeIqPq6mzjw
The Skins (2013)
https://www.youtube.com/watch?v=qn2tT8Z5cno
Natália Munroe (Kali) (2014)
http://tnb.art.br/rede/kalibr
Referências
https://broadly.vice.com/en_us/article/alternatives-to-alternatives-the-black-grrrls-riot-ignored
https://obuli.com.br/2017/04/08/por-que-precisamos-provar-que-a-musica-negra-e-negra/
http://ansia2.blogspot.com.br/2013/06/kathleen-hanna-le-riot-grrrl-manifesto.html#.WRNVP_nyvIU
https://sopaalternativa.com.br/sista-grrrls-riot-onde-estavam-as-mulheres-negras-no-riot-grrrl/
https://mjournal.online/Imaginacao-Radical-Negra-Um-Manifesto-Desassossego-por-Nathalia-Gril