“Tár” (2022) – Por Lívia Fiuza Garcia
É tempo do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.! Como todo ano, a premiação, também conhecida como Oscar, supostamente indica e condecora os melhores filmes, atuações e trabalhos técnicos da temporada. Um propósito no qual falha, às vezes de modo ofensivo para os amantes da sétima arte, desde 1929. O que ocasiona decepções e polêmicas, aumentando seus detratores. Oscar, afinal, é honraria da indústria e não reconhecimento artístico. Por outro lado, o troféu tem seus admiradores, que se sentem representados pelas escolhas da Academia e até promovem bolões. Mesmo críticos de cinema têm esse hábito.
Independentemente do amor, da repulsa ou da indiferença, o “The Oscar goes to…” segue cativando e movendo cinéfilos, confirmando o lugar da festa hollywoodiana como a maior cerimônia de premiação de cinema que existe no mundo (cuja audiência diminui ano após ano).
Como amamos cinema (e assumindo as incoerências da vida), convidamos escritores, críticos e estudantes de audiovisual para escreverem sobre alguma das 10 produções indicadas à categoria principal: a de melhor filme.
Lydia Tár pode render a Cate Blanchett o seu segundo Oscar de melhor atriz. A estudante de Cinema e Audiovisual Lívia Fiuza Garcia revela o que, além de Blanchett, Tár, de Todd Field, concorrente à estatueta de melhor filme, tem a oferecer à sétima arte.
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TÁR. Direção: Todd Field. País de Origem: Estados Unidos, 2022.
Ludwig van Beethoven anotava toda música ou todo som e elemento sonoro que ouvia durante suas caminhadas ao ar livre a fim de ter como inspiração o ambiente em volta, pelo menos é o que estudiosos da música, como Rodrigo Duarte, dizem. E se for esse mesmo o caso, isso se torna mais um dos elementos de TÁR (2022) que conectam o filme profundamente com todos os princípios de criação musical. A sonoplastia é marcante e é impossível passar despercebida até mesmo pelo espectador cansado dos seus 158 minutos. O som ao redor rege inteiramente Tár e o seu processo criativo, que, assim como Beethoven, se permite levar pelos barulhos e sons cotidianos. É fascinante como lidam com o som em momentos de silêncio e como ele é transformado em uma parte fundamental do concerto maior regido por Lydia. Todo ruído que seja emitido na obra segue um ritmo e uma intensidade que Tár comanda até não conseguir mais, tudo se transforma em inspiração musical e, consequentemente, em uma perturbação da mente. Os sons se portam como uma outra personagem e, portanto, desempenham suas funções em torno da protagonista. Aquele barulho repetitivo incansável e não identificado que se torna irritante para a maioria dos ouvidos, para Tár é uma melodia a ser acrescentada e que faltava para a composição, e essas aparecem ao longo do filme em momentos chave para determinar uma mudança de ritmo e de avanço da narrativa. A espacialização e a sonoridade se convergindo para gerar música é um elemento primoroso por parte da direção de Todd Field.
No princípio, o filme tem uma construção extremamente lenta e técnica, que assusta e intimida boa parte dos espectadores. Acontece a construção de quem é Lydia Tár que o mundo conhece, todos os feitos e realizações e como ela se porta diante do status e construção como figura pública. Além da regurgitação de conhecimentos específicos que entusiastas da música devam ter se empolgado por compreender e vislumbrar uma série de monólogos de Cate Blanchett (Lydia Tár) sobre o fazer música. Para o público leigo, esse início é desmotivador e cansativo, mas tudo muda quando se vê pela primeira vez aqueles termos acadêmicos e específicos para exprimir o fenômeno que Tár é, se transformando em realidade. TÁR é um filme que engana a todo momento e quando ele faz com que o público esteja acostumado com a sua lentidão, em um corte seco, como se Field acordasse o público de um sono profundo de maneira tão abrupta, o espectador é agraciado com a primeira das diversas demonstrações de preparo e controle corporal de Blanchett para esse filme, e se vê a magnitude e perfeição com que Lydia rege uma orquestra, e esse momento é um gatilho transformador do ritmo da obra, que se torna intensa e ainda mais conectada com a sonoplastia espacial.
Outro elemento muito bem posto para demonstrar a cadência narrativa é como o passado e o presente se misturam de modo a expor quem de fato é aquela personagem. Como foi dito, o filme é astucioso em sua construção, a forma com que os acontecimentos se desencadeiam tornam a identificação da linearidade algo nebuloso, um recurso brilhantemente incluído através da montagem para identificar o padrão comportamental da protagonista como vicioso e repetitivo, mais uma peça para compor o quebra-cabeça que é decifrar quem é Tár e entender suas diversas facetas. O filme mescla as temporalidades como um recurso narrativo para mostrar que as histórias se repetem.
Nota-se que TÁR é ainda mais manipulador ao passo que é preferido o uso, essencialmente, de planos abertos devido a figura de Lydia Tár ser extremamente complexa e controversa e para que o filme engane quem assiste, através desses planos gerais querem dizer que ele não entra no mérito de simpatizar a personagem, mas sim de retratá-la, porém, toda essa construção já se caracteriza como a humanização de uma figura inegavelmente feroz.
Esse adjetivo – feroz – é o que melhor resume Lydia e como dentro dela se encontra uma batalha no desenvolvimento da relação do artista e sua arte. O som ao redor se portar como fonte de inspiração para o processo criativo é o que a leva à loucura, por ser o desencadeador de diversos gatilhos para o seu comportamento cíclico de violência e predatório. Ao final do filme, é levado a questionamento todo o início dele: em uma espécie de golpe final em Tár, tudo aquilo que no começo serve como um instrumento diante da grandeza dela (o conhecimento técnico), é desbancado quando ela se vê de volta às origens escutando uma fita do maestro Leonard Bernstein em que ele diz que não se precisa conhecer muitos elementos técnicos para saber o que a música é, precisa saber senti-la. E a realização de Lydia que, mesmo absorvendo o que o ambiente proporciona para construir música, fica paralisada por essa necessidade tecnicista e não consegue criar, somente reproduzir.
Ainda se faz necessário mencionar a habilidade no comando da direção de fotografia por Florian Hoffmeister. O uso de planos abertos de forma constante, em algumas obras, pode não combinar com a fluidez da expressão cênica, e obviamente o talento imenso de Cate Blanchett e Nina Hoss (Sharon Goodnow) são enormes facilitadores para se contornar essa limitação, mas também a proposta de apagamento de uma barreira temporal a fim de gerar uma “confusão organizada” é muito bem manipulada e a sensação de ser observada por essas ações passadas e consequências dessas no presente são bem expostas mesmo com uma câmera distante.
Um tópico muito atual e que se faz presente na trama é a questão do cancelamento. É mostrado como uma figura tão poderosa consegue ir do luxo e controle absoluto sobre tudo, cair e se tornar tão irrelevante a ponto de só lhe restar o exílio e a abdicação de todo glamour e se contentar com um final surpreendentemente hilário. Talvez essa queda total e martirização sejam reservadas somente à figura da mulher lésbica, visto que, em alguns anos de existência da expressão “cultura do cancelamento” poucos homens cujas atitudes foram reprimidas, tiveram tal fim. Todavia, o filme não entra nesse mérito e por ser colocado em microscópio tudo aquilo que Tár faz, torna-se incontestável os absurdos comportamentais e todas as micro e macro violências que ela cometi com todos que se relaciona de maneira transacional. Sharon atesta que todas as relações de Lydia (menos com sua filha) se dão por meio de trocas e do que cada um tem a oferecer, e devido ao poder que ela detém, essas transações se tornam desleais e abusivas. O comportamento destrutivo de Tár se intensifica com o desenrolar da quinta sinfonia de Mahler, até chegar à catarse e consequentemente por um fim de vez ao respeito e influência que ela tinha.
É fundamental exaltar a performance individual excepcional de Blanchett. É inacreditável como ela consegue se superar e entregar (talvez) uma atuação que ultrapasse a magnitude dela como Elizabeth. Fields desenvolve um filme em que ela necessita se permitir integralmente e ela entrega tudo que é necessário e ainda mais. O controle corporal de todas as ações, os ensaios para que tudo sirva milimetricamente como um elemento substancial para a concepção da figura de Lydia Tár são visíveis durante todo o filme. Cate Blanchett é absoluta e se esse filme é, de fato, a sua despedida das telonas, foi maravilhoso poder acompanhar essa performance.
Onde assistir: Em cartaz nos cinemas.
* Lívia Fiuza Garcia cursa o 4° semestre de Cinema e Audiovisual na UFMT, é bolsista do CNPq com um projeto que visa estudar a filmografia de Anna Muylaert e realizou um documentário a partir do projeto de iniciação científica, Timbres Diplomáticos.