#Tbt Cine – “Eles não usam black-tie” (1981) – Por Pollyana Rodrigues
A estudante de Cinema e Audiovisual (UFMT), continuísta e roteirista Pollyana Rodrigues* é a convidada da Coluna #Tbt Cine. No radar, Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman.
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Eles não usam black-tie. Direção: Leon Hirszman. País de Origem: Brasil, 1981.
Eles não usam Black Tie é um filme de ficção de 1981 dirigido por Leon Hirszman, adaptado de uma peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, que interpreta o líder sindical Otávio. O nome da peça foi uma clara provocação à dramaturgia da época que abordava temas estranhos à realidade do povo brasileiro durante o golpe militar.
A obra conta a história de Tião (interpretado por Carlos Alberto Riccelli), um jovem operário cheio de sonhos e ambições que namora Maria (vivida por Bete Mendes), colega de fábrica. Ambos se veem em uma situação que beira o desespero ao descobrir que Maria está grávida. Durante essa situação, uma greve eclode na fábrica com vários operários aderindo ao movimento, inclusive o pai de Tião, Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), que, ao participar das manifestações, percebe que seu filho age contra os ideais dos operários militantes e colabora com a Polícia ao incentivar outras pessoas a furarem a greve. Consternado, acaba sendo espancado e preso. A indiferença do filho com a prisão do pai só maximiza as diferenças entre ambos, pois Tião culpa o pai pela miséria em que vivem por conta desses ideais “inúteis”.
Podemos dizer que a peça e o filme abordam diferentes conjunturas: a primeira retrata o Brasil dos anos 1950, com o recente avanço de suas forças produtivas em contraste com o operariado e o segundo faz analogia ao Brasil do final da ditadura militar e fascista, período em que as Greves na região do Grande ABC se tornavam cada vez mais populares. Embora falem de diferentes “Brasis”, as representações são as mesmas: o embate ideológico e moral entre pai e filho num contexto de luta grevista.
Sabemos desde o princípio que o filme é um retrato do modernismo brasileiro, que também não foge muito da nossa atualidade. Vivemos, junto com Tião, a situação que comumente aflige vários jovens angustiados e frustrados com as decisões que lhe são impostas, mesmo sem querer. Decidir casar com a namorada por uma obrigação que na época era imposta pela sociedade, pois mulher solteira grávida perde a moral, ao mesmo tempo em que tem que escolher um lado durante a greve sindical na fábrica em que trabalha, correndo risco de perder o emprego que agora lhe parece mais precioso do que nunca, só nos revela as mazelas de uma sociedade fraturada. A história acontece no período da ditadura militar, em que a liberdade de expressão custava a própria vida e de quem mais se opusesse à opressão. O que deixa a situação ainda mais delicada, pois vemos uma luta por direitos trabalhistas sem ao menos terem direito de manifestar de fato. Mesmo assim, no começo do filme, percebemos a esperança de uma vida melhor pairando sobre a atmosfera de Tião e Maria que saem de um cinema localizado na Avenida Paulista.
Caminhando entre pôsteres de filmes de ficção, lojas de discos e roupas, notamos que existe um sentimento de anseio ao desejar um futuro tão confortável e doce quanto aos que moram ali na região, ou aos finais felizes dos romances clichês e açucarados. Em seguida essas expectativas são dissolvidas pela necessidade de tomarem um coletivo durante o início da madrugada chuvosa em direção às suas casas, distantes daquela redoma mágica e adorada. Mesmo com as dificuldades do trajeto, lidam, entre risadas, com os respingos fortes de um temporal que invade a janela do ônibus em que estão sentados. Em seguida, a realidade da época invade a tela ao vermos um músico ser abordado de maneira violenta pela polícia, ao lado do casal que passa em silêncio, seguindo o caminho de casa em um estrada de terra completamente enlamaçada.
Como alternativa para se protegerem do temporal, decidem parar na casa de Tião até que a chuva diminua. A direção de arte consegue representar bem a realidade humilde e simples do jovem através da casa de alvenaria, com as paredes amareladas pelo barro e seus móveis surrados e antigos. A paleta de cores predominantemente terrosa e beirando o laranja nos mostra como aquele ambiente possui uma mistura de sensações tanto associadas ao conceito de um novo dia (juventude, calor) quanto outras mais relacionadas à força e firmeza.
O ambiente familiar de Tião se mostra estável a princípio, e somos apresentados a Otávio que chega de uma assembleia (que culminará na greve dos operários) perguntando se todos estão bem e se foram pegos pela chuva. Maria comenta que acabou se molhando durante o percurso, fazendo com o que o relato só instigue mais a indignação do operário que critica a falta de saneamento básico e de uma gestão decente do governo. Em seguida conhecemos a matriarca da família, Romana, interpretada por Fernanda Montenegro. É nítido perceber que o alicerce da família é dividido entre razão e emoção, já que Otávio age de maneira passional quando se trata de lutar pelos direitos básicos e Romana age com cautela, sempre tentando orientar o marido a pensar antes de agir, pois já fora preso no passado, afetando drasticamente na criação dos filhos sem a presença do pai e seus proventos.
É um filme com elementos do cinema novo (movimento cinematográfico que teve como um dos fundadores o próprio Hirszman), mas também é possível identificar a influência do neorrealismo italiano no decorrer da obra, e algumas de suas características estão presentes no tema que concerne toda a história, como a luta de classes, a representação das dificuldades econômicas e a desigualdade sofrida pelas classes mais pobres do país. Traz pautas sensíveis e pertinentes as questões sociais que lidamos, uma delas o alcoolismo como refúgio e acalento de uma vida sofrida e miserável, como mostra a cena em que o pai de Maria, que em seu primeiro dia de serviço em uma obra, após anos desempregado, pede por um adiantamento para pagar algumas dívidas e que no final opta por usar aquela quantia para beber. A decisão resulta em sua morte ao ser abordado por um assaltante durante a volta para casa, deixando esposa e filhos desamparados e trazendo Tião para mais uma responsabilidade brutal ao se tornar o novo provedor e patriarca da casa de Maria. Percebemos também a simplicidade em sua montagem e fotografia, bem como no som, já que os equipamentos utilizados durante determinadas décadas deixavam a desejar à qualidade sonora das produções cinematográficas brasileiras, passando bem longe do “selo de qualidade” studio system.
Um detalhe sobre o filme chama atenção, em nenhum momento os patrões aparecem em cena, eles sempre agem por meio da repressão policial, deixando implícito o seu tratamento impessoal em relação aos subordinados. Outro detalhe é que, durante o período em que Otávio estava preso, sabemos que Tião passou parte da sua infância sendo criado pelos padrinhos (aparentemente pequenos burgueses) e isso se reflete em seu comportamento atual. E também tem influência nas atitudes do rapaz ao compactuar com os patrões da fábrica, que decide delatar supostos operários militantes responsáveis pelo movimento. Em uma cena, vemos que alguns deles acabam sendo demitidos por conta dessa aliança. Tião teria herdado aspectos da moral burguesa, como a ascensão econômica individual e o machismo. Este último é nítido em determinada cena em que proíbe Maria de participar do movimento operário alegando ser seu “dono”. Nesse momento, Tião não reconhece a capacidade de julgamento autônomo da moça, achando que foi influenciada e se engana ao pensar que ela aprovará quaisquer de suas atitudes, inclusive a de ser um fura-greve.
Mais ao final do filme temos o primeiro dia de greve, e vemos que de um lado Tião assume a posição de traidor e decide compactuar com a polícia ao repreender os trabalhadores indecisos sobre aderirem a greve e boicotarem o movimento. Do outro, Maria e Otávio caminham a favor da luta. As consequências de ambas as escolhas beiram a tragédia: Maria quase perde o bebê ao ser agredida por um manifestante contra a greve, Otávio é detido pelo DOPS mas logo em seguida liberado graças à valentia de Romana, que exige sua soltura diante das autoridades. E, por fim, Tião é quase linchado pelos colegas aos gritos de traidor, sendo salvo por Braúlio (interpretado por Milton Gonçalves), amigo de Otávio e um dos líderes sindicais, que suplica aos companheiros que não o agridam. A lucidez racional de Bráulio é objetiva e traz clareza aos indignados, que, em suas palavras, diz: “Ele não é o nosso inimigo, o nosso inimigo é quem explora a gente e a repressão que nos arrebenta”. Assim, trazendo à tona um fato que por muitos passa despercebido.
Mas agora não tem o que fazer já que suas escolhas definiram as consequências e o que lhe resta é partir dali. Já em casa, aguarda o pai para conversar no quintal. Uma clara representação de que já não é mais pertencente àquele espaço. A posição fetal em que está enquanto espera nos revela uma criança perdida, sem saber o que fazer, e responde que o que fez “não foi por covardia, mas também não se arrepende de nada”. A imagem em que Otávio, de pé na parte superior do morro, ouve as justificativas de Tião, que está na parte inferior, nos revela que o jovem, mesmo sabendo que errou e sente culpa, é vaidoso demais para reconhecer e se desculpar. Mais um reflexo da dificuldade em assumir o erro de ter acreditado no discurso que foi vendido durante sua infância no tempo em que viveu com os padrinhos na cidade. Otávio lamenta a decisão do filho e pede para que siga o caminho que escolheu. Ao descer e quase se igualar na altura do olhar do filho, mas ainda se mantendo numa posição superior, responde então que “quem muda de casa muda as ideias”, deixando implícito a necessidade de falar “de igual para igual” sem esquecer que, no final das contas, não é igual ao filho. Tião não só mudou de casa, mudou de classe social por um tempo, mudou de ambiente, mudou para a cidade onde é mais fácil ter contato com ideais meritocráticos que iludem a classe operária. Por fim, se despede da mãe, que às pressas desce as escadas para falar com o filho rechaçado. Aqui temos uma linguagem mais compadecida, em que Romana se agacha para se aproximar do filho que permanece em posição fetal. Agora de pé, Tião se aproxima da mãe em plano fechado, ambos próximos e de frente para o outro. O rosto limpo e sereno nos revela a delicadeza e honestidade de uma mãe que anseia o melhor para o filho, de rosto machucado com um band-aid para conter as dores. A partida do rapaz é passageira, feita para conter alguns danos, mas que, com o tempo, poderá se curar das feridas ideológicas. A mãe não o condena e nem o repreende, o acolhe sem deixar de esquecer que terá que lidar com as consequências. E enfatiza que “é melhor passar fome entre os amigos do que passar fome entre os estranhos.”
Diferentemente de Tião que acaba sendo poupado das agressões e vai embora, Braúlio acaba se tornando mais uma vítima da repressão e do racismo ao ser executado em seguida por policiais durante a caminhada dos operários em direção ao estádio onde aconteceria a reunião sindical. Tião também é outra vítima, só que da exploração, da manipulação burguesa e do complexo de “vira lata”, que acredita que acatar e obedecer sem questionar é a melhor saída e a revolução é apenas uma ideia utópica.
O filme encerra com Romana junto de Otávio, sentados na cozinha enquanto separam alguns feijões na tigela para cozinhar. O silêncio de dor pelo luto do companheiro de luta e pela partida do filho é latente e corta feito faca ao mesmo compasso em que os grãos tocam o recipiente de alumínio. O pobre não pode parar nunca, nem pra chorar pela morte de um amigo muito querido ou pela partida do filho. Tem que continuar trabalhando e sobrevivendo, mas quando se tem ajuda, a tigela enche mais rápido e todo mundo poderá saciar a fome, em conjunto. Vemos isso no plano detalhe das mãos do casal que se entrelaçam, dando força um para o outro e em seguida vemos ambas as mãos separando os feijões na mesa. Otávio não ajuda Romana para comer mais cedo, ele faz porque a ama, faz porque a respeita e faz porque entende qual o lugar deles e como sempre lutaram juntos pela classe e pela família.
* Pollyana Rodrigues. Graduanda do 6º semestre do curso de Cinema e Audiovisual com conhecimentos em Rádio e TV pela Universidade Federal de Mato Grosso. Em 2019 foi responsável pelo roteiro, produção e direção do curta-metragem universitário GOTA D’ÁGUA, selecionado na MAUAL de 2019 e na 27ª Exposição de Pesquisa e Produção Experimental em Comunicação – Região Centro-Oeste. Participou como continuísta no curta ‘A velhice ilumina o vento’ de Juliana Segóvia e produzido pelo Aquilombamento Audiovisual Quariterê. Responsável pelo roteiro “Rock (R)Existe” selecionado e premiado na 26ª Exposição de Pesquisa e Produção Experimental em Comunicação -Região Centro-Oeste, na categoria Roteiro de Não-Ficção. Dentro da comunidade acadêmica foi colaboradora na Coordenação de Comunicação do Diretório da Comunicação Social em 2019, Representante discente do curso de Radialismo dentro do Colegiado e membro do projeto de extensão Comunicast e ComunicArte no mesmo ano. Fez parte da equipe de Marketing da Gestão 2018/2019 da Associação Atlética Acadêmica de Comunicação e Artes da UFMT, e Diretora de Bateria Universitária da gestão 2019/2020. Participou na produção e realização doUFMTalentos, Show de Talentos realizado no Auditório do Centro Cultural da UFMT, em Maio de 2019. Em 2020 mediou sessões de entrevista que compõem a série de lives do Programa Conexão RANEMA: programa de extensão dos cursos de Radialismo e Cinema e Audiovisual para o período de pandemia. Teve o roteiro de ficção “E Agora, José” selecionado para MARTE LAB MAUAL 2020, com Henrique Arruda como mentor.
Em 2021, atuou como Assistente de Direção no curta “Aqui Jaz a Melodia” de Wuldson Marcelo e Juliana Segóvia e posteriormente como 2ª Assistente de Câmera do curta “Deize”, de Luísa Lamar e Juliana Segóvia. Em 2023 atuou como Continuísta, Still e 3ª Assistente de Direção no curta “Escola de Bonecas” de André D’Lucca, Wesley Rodrigues e Luísa Lamar.