Terra do fogo – Por João Oliveira
João Oliveira é artista visual. Micronarrativas, farsa, fracasso, relações afetivas, são alguns dos interesses de sua pesquisa. Participa regularmente de exposições coletivas, individuais, residências, tendo sido premiado em muitas delas, dentro e fora do Brasil. Em 2020 lançou o livro Como se escreve um bicho, em parceria com a designer Kaula Cordier. Atualmente prepara sua nova exposição individual, que acontecerá em agosto.
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I
mil novecentos e cinquenta
dezenove cinquenta
era o ano, a hora, o resto
do número do teu telefone
eu não lembro inteiro, eu não lembro,
mas você disse, disso eu lembro:
de cobrir o rosto com as mãos
— nós dois nos arcos,
você disse quero
eu disse já é, e esse é o gesto
que contém todas as falas embotadas.
veja a cena:
nós dois nos arcos,
minhas mãos de maestro conduzindo
o silêncio como se quisessem apanhar o vibrátil
de suas asas, a suspensão do gesto duro
o tempo da mirada
de um beija-flor roxo na quina do olho
então
asas pálpebras nas pontas cílios cortinas mãos
fecham esse grande teatro
que é nosso rosto único e fim do ato
II
eu todo de branco, desonesto, covarde,
neguei três vezes a minha vontade:
— homem, eu não a conheço. eu pensei
nas coisas que são da noite e só a ela convém pousar sobre
eu pensei, corpo estendido sobre o pálio vermelho,
— era essa a minha legenda —
que queria colocar ar nas palavras e dizer
que era mentira quando disse que
era só o meu corpo vibrando no grave
ondas no meio da pista, que triste,
eu não queria que ninguém me tocasse, eu disse. era mentira
a gente ali, irisado de suor e vontade,
— neon é gás pouquíssimo abundante e muito leve,
tubo luminoso sinalizando oscilações de desejo,
circuitos de disparo, peito contra peito
nós dois,
o pálio aberto,
o vermelho no chão,
tesão pichado nas paredes,
peito contra peito, eu perdi tudo ali.
os meus olhos turvados daquele vermelho
nos meus óculos, perdi todo o teatro
do teu rosto, pra que serve um disfarce, afinal?
perdi neon isqueiro stabilo azul
teu rosto um tubo pastoso de azul petróleo
um estojo de lápis de cor todos da mesma cor
azul a gente ali
III
esse desejo não decola, esse desejo,
um avião que corre na pista e
não decola, esse desejo,
um parque sem cachorro, esse desejo
tatuado dentro da boca,
me doe os dentes
IV
insubmisso, o corpo convoca seu chamamento,
inventa superlativos, fabrica um dicionário com teu
nome e todas as palavras redesenham-se em você
você, você, você, você é o verdadeiro nome da vida
quando teus olhos querentes na minha nuca,
barbárie. — os bárbaros tem olhos azuis,
disso não duvido.
V
eu queria que fosse assim todo dia
um dia como outro qualquer, tua mão
na quina do meu olho roxo, o voo da tua mão na quina dos meus shorts, uma mão
na quina da minha nuca a outra mão
na minha pica, um beija-flor
VI
deste lado de cá ninguém diz oceano
— um mar sem nome que ia ser o nome de nós dois. na pista, a cidade.
lá embaixo,
uma escultura de armadilhas.
voltei pra casa com o cavalo no bolso
e agora
VII
se eu pensar em você,
você não vai saber