Todos Amam Shakespeare
Ainda ouvia o zumbido baixinho, quase como um sussurro. Agora não distinguia se era o apito do monitor escolar, anunciando que ele não tinha mais salvação, ou a voz rouca e fraca de uma menina a suplicar “Mate todos!”. Tomou banho, ficou minutos embaixo do chuveiro sem tocar o corpo. As mãos tremiam enquanto a voz em sua mente deixava de ser nítida, parecia um vento frio a cutucar-lhe com a ponta de uma faca a coluna cervical. Quanto mais pensava, mais segurava o vômito. Desligou o chuveiro, sentindo a água que fora incapaz de limpar a alma. O sangue jovem escorrendo, do ralo para o esgoto, do esgoto para o esquecimento da História. Com h maiúsculo.
Kiko estava morto. Teve coragem. Depois de tudo terminado, pegou a pistola .40, cortesia do pai PM, grudou-a na têmpora esquerda, apesar de não ser canhoto, e disparou executando com primazia o plano. Luan pensava no amigo e concluía, sem margem para dúvidas, que fora covarde, desonrando a ligação entre eles, o que culminaria no fracasso de tudo que planejaram nos mínimos detalhes.
– Acordar às 5h30 e comer duas fatias de pão de forma e beber um suco de laranja.
– Tomar um banho caprichado.
– Reler o plano.
– Arrumar o material escolar.
– Checar a arma.
– Kiko: ver pela última vez as fotos que tem com Karen; Luan: escolher um trecho de Rei Lear e fazer a leitura derradeira.
– Antes de sair, esforçar-se para dizer “Te amo, mãe”, no caso de Luan. E Kiko fazer das tripas coração para lançar ao mundo um “Te amo, pai”.
Luan refletia se fora a escolha correta pronunciar algo que os pais não tinham o costume de ouvir e nem de falar para eles. Assim não se sentiriam culpados. Mas mereciam ser inocentados? O menino, 13 anos mal-vividos, tentava decidir se buscava conforto em Shakespeare mais uma vez. Sentiu que não tinha o direito de importunar o velho bardo. Que o deixasse em paz. Kiko estava morto! E ele vivo. Ainda! Aguardava a polícia. Não sabia ao certo como escapou sem ser perseguido. Aguardava.
Olhou para o revólver calibre 38 que usou há uma hora. Ainda ouvia os gritos, via o sangue manchando paredes e pessoas encolhidas, contorcendo-se no chão ou para morrer ou para se salvar. O relógio da sala parecia parado. Danificado pelo tempo, que não marcava mais o que a vida exaltava ou abandonava, só a memória do que não pode ser mais consertado, nem por decreto ou à revelia. Viu uma foto da mãe. Sentiu que a perdoava. E, no perdão, pensou se poderia morrer e encontrar Kiko do outro lado. Talvez no inferno, condenado à miséria eterna. Talvez no paraíso, reconhecido como um anjo exterminador. Deveria receber à bala a polícia? Um confronto à la Butch Cassidy, mas sem Sundance Kid? Kiko era um corpo jazendo no chão frio de uma escola. E que doença é essa que infesta a alma, como petróleo nas penas de um pássaro. Incerteza depois do ato? Queria tanto viver? “Só a morte redime”, incentivaram-se antes de tomar o rumo de suas escolhas. Redimiu Kiko? Irá redimi-lo?
Kiko vacilou também. Frente a frente com Karen. A bela Karen. O que é o sofrimento vivido diante dos olhos que perguntam “Por quê?”. Luan imaginou se Kiko não fora sádico, deixando-a para se torturar com as respostas que poderia encontrar e descartar para reiniciar o ciclo. Talvez Kiko só quisesse puni-la. Por tudo e por todos. E ele, Luan, a quem quis punir? Se ninguém ama Shakespeare, o seu refúgio, quer dizer que todos os amam, já que o abominam por não entendê-lo. O ódio é uma forma de amor.
E pensando no ódio, no peso do revólver inativo do PM pai de Kiko, de como também amava Karen e faria tudo por Kiko… Mas não, não fez tudo. Não acertou a própria têmpora com o 38. Viu Kiko fazer e cair, muita gente gritar e urinar nas calças. Na contagem de corpos, sete assassinados. E Kiko seria lembrado? Colocariam velas para ele nos santuários que criariam para o massacre do mês, que logo seria esquecido por alguma outra tragédia? Aguardava a polícia. Kiko estava morto!
Lembrou-se daquele manhã, quase já adormecendo, o relógio parado ignorando o tempo, a sua identidade conhecida desde o princípio, no primeiro tiro que matou Alessandro, vulgo T-Rex. Sussurrou a menina em seu ouvido: “Esse aí quer a Karen e odeia Romeu e Julieta. Lembra? Você sabe?”. Sabia? No torpor pós-emoção, tudo é confuso. Passaram direto pela professora de biologia, a Eva. “Ela é gente fina”, sentenciou Kiko, 14 anos, atlético, apaixonado e filho de um pai violento. Kiko começou a cantarolar em um inglês horrível Dream On, do Aerosmith. “Cala boca, caralho!”, falou entre risos Luan, que começava a ficar assustado. Na sala da 8ª B, havia de seis a sete alunos. Outros conseguiram correr. Kiko viu Rubinho, o colecionador, o cara do harém. Mas quem fazia parte desse harém? Não conseguia elencar nomes. Só via silhuetas femininas disformes. Quem era Rubinho? Nunca se lembrou de perguntar. Dois tiros no peito. Continuaram, já que havia muito a ser feito. Ao dobrar uma esquina, próxima a cantina, que certeza seria um esconderijo, Edgar, o professor de matemática, surgiu do nada, mãos trêmulas, respiração arfante, desprazer anunciado, Luan disparou. “Três. Mas o Edgar dava uma aula chata, mas a culpa não era dele, pô!”. Luan engoliu a seco. O nervosismo já estava evidente. Daí foi Karen e Isabel. A bela Karen. Ela sofreu e fez sofrer. Kiko e ela traíram e foram traídos. Luan só assistindo. Sofrendo também. Pelo amor por Karen calado no peito e pela amizade inabalável com Kiko. Os meninos encararam Karen, 13 anos, cabelos pretos, olhos de quem sabe segredos que a vida não revela a qualquer um, a qualquer hora. Mais madura que os dois. Diante dela, Kiko vacilou. Luan cumpriu a sentença: Karen viveria, viverá para poder esquecer. Isabel teve sorte… Estava com Karen.
Na cantina, um silêncio que não continha o alvoroço, o cheiro e o som do medo. E foi lá que justamente tudo foi decidido. Os últimos carrascos. Ou seriam escolhas aleatórias de uma memória irregular? A voz da menina dizendo, e Luan traduzindo sílaba por sílaba para Kiko. Em uma mesa, mal escondido, Jelder chorava. “Foi esse infeliz que queimou seu braço com cigarro no aniversário da Sol”. Foi Kiko quem disparou. A Calibre .40 cuspindo sua justiça. No torpor, na solidão da espera, tudo parece confuso. Luan até duvidava agora que fora Jelder que o havia queimado com cigarro. Talvez tivesse sido obra do Fabrício, um cara ruivo. Mas certeza que Jelder odiava Henrique V. Quando Letícia, 15 anos, cabelos castanho, estatura mediana, levantou-se, Kiko efetuou mais um disparo. “Por quê, Kiko?”, perguntou Letícia, sangrando já a sua morte e fazendo as mãos de Luan tremerem ainda mais. “A voz disse algo sobre você. Que eu sou culpado por não resistir e você por me amar e persistir. Perdi a Karen e perdi tudo”. Luan quis argumentar que a voz não havia dito nada sobre Letícia, só sobre o Abraão, que iludiu a Karen, a fez enganar Kiko. A humilhação final a Kiko. E havia os dias de bullying. Abraão estava na cantina, por um golpe do destino ou um azar tremendo. Nesse dia, Luan, chorando, antecipou-se a Kiko, tirou-lhe sua vingança. Com o revólver calibre 38 queimando as mãos, disparou três vezes. O corpo inerte de Abraão só fez as lágrimas brotarem com mais intensidade. Kiko não disse nada. Apenas assistiu à cena, dando o caso como encerrado. “Não lamente”, impôs-se a voz, “Esse filho da puta odiava de corpo e alma Shakespeare. Bom motivo pra morrer, não é?”. Depois de Abraão findar sua existência na Terra, os amigos ficaram um tempo parados. Oportunidades para alguns escaparem. Outros continuaram em seus esconderijos. Mas Verônica foi pega no meio do caminho, entre a saída e o retorno para o lugar que não desejava como seu túmulo. A menina, 11 anos, frequentava a sexta série, pequena, modista, fã de youtubers. Dos pesadelos da escola, o mais aterrador foi o suicídio de Ana Clara, também de 11 anos, viciado em Netflix e apaixonada por um menino, ao qual Verônica supostamente envenenou com um comentário sobre Ana não ser mais virgem. Luan recordou-se de um dia ter escutado Ana pedir um lanche: “Eu quero um suco daquele ali… É sim, não bebo refrigerante”. Era a mesma voz em sua mente. Ana Clara! Luan apontou Verônica para Kiko. Quase disse um sonoro não, imaginando se tudo não passou de um mal-entendido. Mas aquela altura dos acontecimentos, tinha o direito de ignorar Ana Clara, perguntava-se o menino. A pistola .40 fez o seu trabalho. Cortesia do pai PM, de cinco ou seis surras providenciais, para forjar caráter. O rosto de Kiko já não revelava expressão alguma. Luan não poderia culpar a mãe, que só bebia um pouco e chorava, afundada na tristeza, levantava para trabalhar e seguia o ciclo. Na escola, era diferente. Um bando de ignorantes que não sabiam o que era inteligência. Notas boas pra quê? Pra apanhar no corredor da escola? Ver um fulano bonito e vazio se gabar por comer não sei quantas garotas? Ou uma infeliz se achar a dona da escola como se tivesse saído direto de Meninas Malvadas? Pensou ter suas razões bem definidas. Mas suando no sofá da sala, duvidava até que existia.
No torpor, a sirene da polícia pareceu o canto de uma sereia. Atraído pelo perigo, pelo inevitável e inominável ato final. Um Butch Cassidy sem Sundance Kid, sairia atirando, descarregando o revólver. Luan levantou e viu o rosto de Kiko, no exato momento do suicídio. Cumpriu o combinado. Ele, não. Foi covarde, atroz. Enfim, a polícia. A chance de se redimir. Mas as mãos tremiam. No jornal, no dia seguinte, as notícias dariam ênfase à popularidade de Kiko e a inteligência de Luan. Então… Então…. Por quê? Por que meu filho, um menino tão legal, o Alessandro? Tão generoso o Abraão? Tão sonhadora a Verônica? Luan não sabia a resposta. Não mais. Algemado foi conduzido sob vaias e gritos de “monstro”, “Lincha!” e alguém que dizia “Culpa da mãe, aquela bêbada”. Se perguntado do motivo, Luan responderia: “Eram incultos”. E tentando ser lúcido concluiria: “Todos amam Shakespeare. Esses infelizes, não”. Não falou sobre Ana Clara. Eles nunca mais conversaram.
(Arte: “Roulette”, de Boneface).