Trans-eco: vozes que se somam – Por Esteban Rodrigues
KAIQUE THEODORO
Conto de puta
Se há em cada esquina um sonho,
um conto, uma besteira leve dessas
mas não tão leve quanto as memórias que se vão na minha embriaguez
Há também um tom de blues nesse céu nublado
que narram as gargalhadas das 7 horas na lapa,
desses nossos desencontros, dessas suas histórias com a esposa que te espera
Imagino se realmente te espera
e como te espera
Com a janta pronta, o pijama vestido
Ou se ela também conta dessas histórias com uma pessoa qualquer
E se essa pessoa nova não for uma qualquer?
Você ri e agradece
Abre a carteira, as notas já arrumadas são colocadas na mesa de cabiceira
E se despede
Indo até a sua amada que talvez o espere, mas sem muita pressa
Abre a porta do carro e pelas ruas vazias da lapa segue
A campainha toca, e é você outra vez
Me abraça e me beija
Deita na minha cama e me faz pedidos
Anoto-os na cabeça, como uma criança atenta que escuta a lista de compras da mãe e segue sozinha numa daquelas mercearias velhas
Você, agora, é a mãe
Que sente aquele antigo receio de deixar que a cria, possivelmente incapaz, te surpreenda
Acendo um cigarro
Crianças não deveriam fumar, você sabe, mas não posso evitar
Deixo que suas mãos passeiem pelo meu corpo enquanto suspiro a fumaça
Não sei se é casado, se tem alguém que espera por ti
Por aqui as madrugadas são solitárias, quando me dou por mim me encontro inteiramente minha
Livre, meu bem, sem mãos que me toquem
Seja por amor ou desejo
E até com as mãos que me tocam
Continuo assim
Há uma imensa distância entre a pele e a alma, e por mais que me toque, você de fato nunca irá me tocar
Cria de Jacarepagua, zona oeste carioca, Kaique é um jovem artista transmasculino, que brinca com narrativas cotidianas e poesias nas batidas do funk somadas ao nosso querido pop nacional, trazendo uma sonoridade única às suas canções. Em sua carreira, o cantor e ator já se apresentou em eventos memoráveis como a Festa de Encerramento da Parada LGBT (2018), Festival Transarte (2018), Corpos Visíveis, na Fundição Progresso (2018), Festival Trama Afetiva, CCSP (2019), 50 Anos de Stonewall, Circo Voador (2019), Marcha Pelo Orgulho Trans, Largo do Arouche (2019), entre muitos outros.
*
MELINY BEVACQUA
há anos não para de chover dentro de mim. é assim a sensação de um instante. tenho estado-água. uma gota me toca a pele e todo o universo ondula. tenho encontros fora da realidade. eu já conhecia tudo isso, é como se fosse. há anos não param de passar os anos. um fim diferente, uma nova fronteira. pulam crianças por todos os lados. isso também é novo. crianças são como ondas nesse mar de tempestade, agora, aqui. a realidade é tão frágil, de repente as crianças são a maré das nossas emoções. me sinto aberta. uma grande fenda percorre minha carne. chorei muito, esses dias. eu acordei de madrugada e tive sentimentos ruins. mas estou tão alegre. o espelho me questionando a sanidade: ainda bem. ainda vem. eu leio uma astróloga dizendo o que vai acontecer já está acontecendo, e é isso. minha garganta treme conforme eu escuto uma voz. o que está acontecendo? sinto tanto com os pedaços de mim, ex-órgãos. meu coração aprendeu a falar, e ele não quer cochicho. é tão boa a liberdade de amar. alguém me diz uma fragilidade e eu derreto. e sendo água no chão posso matar a sede da terra. o amor é uma fonte que não para de umedecer o ar: às vezes sentimos uma falta de ar. às vezes afogada. borboletas nascem dentro do meu diafragma. que delícia estar viva. está sentindo?
meliny bevacqua é travesti, taróloga, escritora e mãe.
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KAIROS CASTRO
Filho de Ares e Cronos
(Mitos e simbolos)
No ano do macaco de água
Em um dos dias Frigga
Nascido ao sol de Ares (Marte)
Com lua e ascendente em Cronos (Saturno)
O coração em Poseidon (Netuno)
Nasceu com nome imaculado
Puro e casto designado
Desejam um carneiro comportado
Diferente do esperado
Nasceu um carrasco
Monstro descontrolado
Na forma de um menino descompassado.
Rei sem reinado
Muito antes de ser Tempus
Já agia como se o tempo fosse outro
Suas perguntas
Não sabiam as respostas
Nada disso era previsto
Devia ter nascido um menino dourado
O mais santo
Dos batizados
Nasceu um desviado.
Menino da oportunidade
Agia através manipulação
Liderar sem exército
Requer observação
Às vezes a força
É a força de dentro
Não a força de um punho
Empunhando o seu destino
Ele não sabia o poder
que tinha em suas mãos
Mesmo assim
Ele aprendia que bater era o caminho
Quem bate tem a chance de vencer
Ouviu um touro dizer
Isso muito tempo antes de entender
O poder de um aliado.
Poderia ser político
Com influência de seu astro
Usar o palanque
Para ter destaque
Porém aprendeu por si só que o punho
Nem sempre era a melhor forma de ataque
Quando criança
Não entendia nada disso
Vivia em um ano de 669 sóis
E assim sempre se sentia só
Nos 365 dias terráqueos
Seu anjo Cahethel
Dizem ser o anjo da sorte
Com a sua bênção de Deus
Expulsa os espíritos malignos
Por cansaço ou falta de força
Porque ele não se sentia protegido?
Era falta de pedido?
Como é que Deus permitia tudo isso?
A cada nova igreja
Nenhuma graça concedida
Um outro amanhã
Uma outra religião
Ele não entendia
O que a sua mãe buscava
Só que ansiava
Que ela conseguisse
Se soubesse quem era o anjo dela
Pediria
Assim talvez
Ele ouviria
A única coisa que sabia era que não podia dormir pelado
Já que o anjo aparecia
Enquanto ele dormia
Dormia preocupado
Será que o anjo o via
Ou via apenas o que era dele esperado?
Enquanto isso
Em forma de foguete de 92 até agora
Foram aproximadamente 178 sucessos em 185 lançamentos
Estranho pensar que em 2021 e 2022 novos serão os lançamentos
Eles lançaram e lançarão
Alguém que o nascido não mais reconhece
A vó disse que nome não era bom
“Vai colocar o nome da menina de foguete?”
Ninguém a ouviu
Nem nasceu menina e nem foi para o espaço
Nem se autodestruiu em 96
Deixou isso para 2014
Onde renasceu
Fazem 6 anos
Do dia que entendeu que não era santa
Que a sua voz era de guerreiro
tinha sido consumida
Seu fogo no olhar
não surgia
Porque ele esqueceu enquanto vivia
que devia ser raposa
e não presa
Não mão desse Cistema
A noite deitava com suas 82 luas
Em um céu sem estrelas
Sua vida sem rumo
Uma mente cheia de sequelas
Pelas coisas ditas e não ditas
De uma sociedade severa
Acreditava ele
Pelas contas que tinha feito
Que o perfeito seria
A sua morte
Morreu várias vezes
Às vezes até sem saber
Levantou todas
Andou zumbizando
Por São Paulo inteiro
Enquanto cantava
Todas as canções tristes
Que tinha aprendido até ali
Acreditando que não teria mais longos anos.
O filho de Marte
Pensava que não era filho de ninguém
Talvez fosse do ódio e do desdém
Quando esqueceu de si
Do mundo
Viu no fundo do poço alguém
A princípio o medo daquele lugar imundo
O deixou paralizado
Quando tocou na mão daquele corpo abandonado
A mão lhe pareceu familiar
Motivos que transcendem a lógica
O levarem lá
Ao tocar naquela mão
A mão lhe pareceu familiar
Fechou os olhos
Sentiu as lágrimas
Entendeu que ele mesmo deveria se salvar.
Assim se deu o princípio de outra lenda
Uma lenda do Brasil
O filho de Ares e Cronos se autodescobriu.
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N.A:Poesia composta de várias simbologias/numerologias e mitologias ligadas ao meu nome de registro, do meu nome, da data de meu nascimento e renascimento.
Kairos Castro, 29 anos, não binário, é nascido e criado na zona leste de São Paulo. É poeta, artista performático e produtor cultural. Na sua arte mescla várias linguagens sendo ela através da poesia, audiovisual e performance.Buscando utilizar uma variedade de possibilidades e impossibilidades para ser, quem se é.
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Assinada por Esteban Rodrigues, Ogiva Transpoética é coluna autêntica. Com desvios, inclusive. É um espaço de percepção, reflexão e interação, onde se alimenta a vida com vida. Atravessado por textos ensaísticos e poemas motivados, não apenas em primeira pessoa, aqui vai repousar a realidade bruta do que alcança a transgeneridade de forma sistemática, social, emocional, violenta, afetiva e política. De quinze em quinze, para dar tempo de processar/digerir/degustar a palavra lançada, haverá reflexos de pesquisa e de poética transcrita e exposta a céu aberto. E, ocasionalmente, o tempo feche após isso. As letras aqui dispostas passearão por espaços julgados não nossos: filosofia, literatura, política, teatro e rua. Tudo para dizer o que há muito é dito, crendo dessa vez no espaço da escuta. Essa coluna, que alcança tantos corpes no mundo, existe para mostrar que aquilo que grita também pode ser chamado de cura.
Esteban Rodrigues, 25. Homem trans, negro, do subúrbio de Salvador. Autor das obras Sal a gosto (2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (2021). Integrante das coletâneas Poemas de Amor e Guerra (2021), Corpos Transitórios (2021) e Transmasculinidades Negras (2021). Graduando em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (UFBA). Pesquisador de gênero e raça, escritor, professor, produtor cultural, roteirista, multiartista. Diretor Cultural do Mister Brasil Trans, 1° concurso do mundo e no universo da moda focado em transmasculinidades e suas representações. Integrante dos coletivos TransPoetas e CATS.