Trans-eco: vozes que se somam – Por Esteban Rodrigues
ESTEBAN RODRIGUES
Negativo
Ter a faca
E o queijo
Sempre foi um ditado
Longe demais:
Só funcionava para cortar
Metade da fatia ____
Mainha não tinha grana
E agora, eu por eu
O queijo não tem mais
A faca nem é minha
E a vista do 17°
Frente pro mar
É a minha caverna ____
Sinto, Platão. Prefiro ficar.
*
DIANA SALUSTIANO
a serpente que rasteja
movimento
meu corpo em movimento
o fluxo dos elementos
que nascem em mim, fora de mim
não há fora de mim
o giro da cintura
a força e a leveza
o espaço entre meus dedos
boca de dragão
o espaço entre minhas unhas, curtas
patas de tigresa
o movimento do meu rabo
serpente de
esfinge
– o corpo de leoa
as asas de águia
o rosto de mulher –
e sempre a cauda
de serpente
cujo enigma
ainda não desvendaram
nem adão
nem eva
decifro
me
e
me
devoro
Diana Salu, 30. De Brasília. Artista, escritora, designer, publicadora. Uma das fundadoras da MÊS Editora, em ação de 2013-2017. Idealizadora da Dente – feira de publicações, onde trabalhou até a 5ª edição. Autora do livro Cartas Para Ninguém (2019-2021, padê editorial), onde explora o hibridismo de linguagens e gêneros, com olhar para a poesia, o desenho, a paisagem e a memória e da hq “Então Você Quer Escrever Personagens Trans?”. Idealizadora e coordenadora do “Transzine-se: Laboratório de fanzines.”
*
KIKA SENA
-atire a.
me atacaram pelas costas
tacaram pedra nim mim
tacaram pedra na minha cabeça
tacaram pedra na minha cara
tacaram pedra na minha boca
tacaram pedra no meu sorriso
depois
me seguraram
me amarraram
tacaram fogo nim mim
tacaram fogo no meu cabelo
tacaram fogo na minha pele
tacaram fogo nos meus olhos
tacaram fogo na minha respiração
tacaram fogo na minha voz
logo
não puderam me conter
poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas caras brancas
com meu choro
queimei suas esperanças brancas
tingi tudo de preto
sou brasa forte
tição pós-apocalíptico
pior que deuses ditadores
não mexe
não mexe
não mexe
não mexe comigo não…
que à dor
à dor
à dor
à dor
eu sei reagir.
Kika Sena é mulher trans y travesti, preta y periférica. É arte-educadora, atriz, performer y poeta, sereia dos mangues deodorenses, alagoana, filha de Ivone e neta de Dona Evonilda. Radicada em Brasília, a sereia carrega o mar em sua pele, poros, palavras. Gosta mesmo dessa cidade, um outro habitat, mas sente uma paixão bem funda pela raiz que lhe sustenta: periferia alagoana, cidade de lagoa, mar y rio y ainda tem mais.
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Assinada por Esteban Rodrigues, Ogiva Transpoética é coluna autêntica. Com desvios, inclusive. É um espaço de percepção, reflexão e interação, onde se alimenta a vida com vida. Atravessado por textos ensaísticos e poemas motivados, não apenas em primeira pessoa, aqui vai repousar a realidade bruta do que alcança a transgeneridade de forma sistemática, social, emocional, violenta, afetiva e política. De quinze em quinze, para dar tempo de processar/digerir/degustar a palavra lançada, haverá reflexos de pesquisa e de poética transcrita e exposta a céu aberto. E, ocasionalmente, o tempo feche após isso. As letras aqui dispostas passearão por espaços julgados não nossos: filosofia, literatura, política, teatro e rua. Tudo para dizer o que há muito é dito, crendo dessa vez no espaço da escuta. Essa coluna, que alcança tantos corpes no mundo, existe para mostrar que aquilo que grita também pode ser chamado de cura.
Esteban Rodrigues, 25. Homem trans, negro, do subúrbio de Salvador. Autor das obras Sal a gosto (2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (2021). Integrante das coletâneas Poemas de Amor e Guerra (2021), Corpos Transitórios (2021) e Transmasculinidades Negras (2021). Graduando em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (UFBA). Pesquisador de gênero e raça, escritor, professor, produtor cultural, roteirista, multiartista. Diretor Cultural do Mister Brasil Trans, 1° concurso do mundo e no universo da moda focado em transmasculinidades e suas representações. Integrante dos coletivos TransPoetas e CATS.