Trans-eco: vozes que se somam – Por Esteban Rodrigues
O que era um dia, uma semana, um mês, deveria ser um ano – uma vida.
de 23 à 29 de Janeiro, a coluna Ogiva Transpoética, de Esteban Rodrigues, trará vozes que gritam sussurros – sussurram gritos (?). autoras e autores trans que contemplam múltiplas narrativas experiências vivências imaginários para mostrar que nem só de “ser trans” viverá o trans – mas há muito que atravessa.
sejam bem apresentades ao espaço – semana da visibilidade trans.
não nos esqueça na virada do calendário.
A arte para semana da visibilidade trans: “Trans-eco: vozes que se somam” foi feita pelo artista e poeta Thiago Uchôa.
THIAGO UCHÔA
eu sou um jardim botânico
infectado
por uma erva daninha.
desde que você passou por aqui,
eu já reconstruí meu corpo inteiro:
fiz brotar flores
e pelos
com injeções regulares,
descobri uma voz
tão grossa
que faz minha caixa torácica
vibrar
feito
música,
ganhei peso
e auto-estima
e uma barba
cheia
de fios brancos,
consertei
minhas cicatrizes
com cola quente
e paciência
e enfeitei
cada pedaço
dessa casa
(um dia decrépita)
para ver algo que amo
quando olho no espelho.
hoje,
tenho linhas de expressão
e durmo
me fazendo cafuné,
mas
de alguma forma
você resiste,
como se tivesse se plantado
nas camadas mais fundas
da minha pele.
você tenta me corroer por dentro
e eu não deixo
mais por teimosia
que por resiliência:
não vai ser um moquele
descuidado
radioativo
e cruel
que nem você
que vai conseguir.
faz dez anos
que você me aconteceu
como um acidente nuclear criminoso
e eu ainda estou fazendo inventário
de tudo que perdi
por sua violência.
feliz aniversário.
obrigado por me ensinar
que o trauma
pode deformar
o cérebro
a ponto de ser visível
em exames de imagem,
e que a flora
leva décadas para se recuperar
de raízes radioativas.
(qual é
a meia-vida
de um estupro?)
Thiago Uchôa. 27 anos, baiano, autista, não-binário transmasculino. Poeta e ilustrador, como foco em arte digital.
*
RAFA ELLA BRITES
Cor ação
Não vou te dizer do bagaço
Que anda meu coração
Que sente falta pois seco respira
Qual seja a liga de pele com pulso
Vou te mostrar nenhum estilhaço
Que brilha faísca noturna
Que rompe bordadinhos de fé
Que dizia pra você voltar, sussurrando
Procurando cor e ação
Cabe todo numa oração
Não entoada tranquilamente
Não se diz dela qualquer desdém
Não há verbo dito em seu nome, porém
Hachurada flor que não respira
Não que dela não saia vida
Que não brilha, relampeja
Não que nela não se almeja
Brada um grito de limpeza
Refaz meu altar em abrigo
Me faz ressaltar seu abraço
Não vou te dizer do cansaço
Lume d’água funda lama
Cheiro viço verde avulso
Santa mole bate duro
Costume dizer-ei de viver
Criando regozijado gozo
Costume hei de fazer
Criando rugas no meu pulso
Rafa Ella Brites, uma mistura de Maria Bethânia e Studio Ghibli, artista da palavra, mulher transvestigênere, canceriana da lua e das águas, @sereiasubversa nas redes.
*
JUPI77ER
se meu gênero não existe
o seu também não
veio junto com as caravelas e a colonização
se meu gênero não existe
o seu também não
veio junto com o pecado e a catequização
se meu gênero não existe
o seu também não
veio junto com francês pondo indígena tybyra em canhão
veio junto com a igreja e evangelização
pra criar papel de gênero e mão de obra de exploração
pra constituir família, patriarcado em operação
pra gerar lucro pra coroa e o papa de outra geração
se meu gênero não existe
o seu também é uma invenção
que coloca sua genitália como centro das atenção
e o desvio dessa norma como horror aberração
pra colocar como sodomita meu corpo em contestação
se meu gênero não existe
o seu é uma violação
põe meu corpo em oposição
pra criar travesticídio, genocídio da população
preta, pobre, indígena,
morta pela polícia antígena,
pior que tragédia de antígona,
gênero é obra fictícia de alienação
pra ver corpo indo ao chão
esse papo de colono, não cola mais não
não caio, não reproduzo, encerro aqui teu ciclo de opressão
meu gênero eu que sinto, eu que invento
quebro as regra do teu convento
da tua língua, do teu contrato,
do teu idioma nefasto, binário em execução
se sua lei ainda existe, aqui ela não é não
se meu gênero não existe
o seu também não
se meu caminho é não binário
que seja o da decolonização
juntar com povo originário
taca fogo em borba gato,
bandeirante em implosão
plano antifa de perifa em execução
se meu gênero é imaginário
que seja o da libertação
pra imaginar um mundo livre
sem fronteira, grade, opressão
já que gênero é social, só construção
desconstrói sua mente dessa prisão
cisgênera, branca, homogênea,
hegemônica, hipocristã
meu gênero se reinventa
o seu é só uma imposição
e já que pra você eu não existo
pra mim, você também não.
Jupi77er é Mc, Poeta, Compositor, Empreendedor, Apresentador, compoe a dupla Rap Plus Size e é trans não binário.
————————
Assinada por Esteban Rodrigues, Ogiva Transpoética é coluna autêntica. Com desvios, inclusive. É um espaço de percepção, reflexão e interação, onde se alimenta a vida com vida. Atravessado por textos ensaísticos e poemas motivados, não apenas em primeira pessoa, aqui vai repousar a realidade bruta do que alcança a transgeneridade de forma sistemática, social, emocional, violenta, afetiva e política. De quinze em quinze, para dar tempo de processar/digerir/degustar a palavra lançada, haverá reflexos de pesquisa e de poética transcrita e exposta a céu aberto. E, ocasionalmente, o tempo feche após isso. As letras aqui dispostas passearão por espaços julgados não nossos: filosofia, literatura, política, teatro e rua. Tudo para dizer o que há muito é dito, crendo dessa vez no espaço da escuta. Essa coluna, que alcança tantos corpes no mundo, existe para mostrar que aquilo que grita também pode ser chamado de cura.
Esteban Rodrigues, 25. Homem trans, negro, do subúrbio de Salvador. Autor das obras Sal a gosto (2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (2021). Integrante das coletâneas Poemas de Amor e Guerra (2021), Corpos Transitórios (2021) e Transmasculinidades Negras (2021). Graduando em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (UFBA). Pesquisador de gênero e raça, escritor, professor, produtor cultural, roteirista, multiartista. Diretor Cultural do Mister Brasil Trans, 1° concurso do mundo e no universo da moda focado em transmasculinidades e suas representações. Integrante dos coletivos TransPoetas e CATS.