Trans/sexualidade: corpo recodificado, desejo também – Por Angie Barbosa
Eu me lembro da primeira vez que vi a entrevista Os feitiços e os desejos de Linn da Quebrada, para a UOL TAB. Eu estava iniciando minha trajetória como uma jovem pesquisadora nos estudos da sexualidade, e tinha a sensação de que as falas de Linn sobre sua música Enviadescer tinham mais a me dizer do que eu conseguia intuir no momento. Eu ainda não tinha transicionado. Por isso, apesar de achar que sim, ainda não entendia completamente porque Linn tinha se dedicado a um redirecionamento de seu desejo para fora da figura do macho. Porque era tão importante desejar corpos “mais parecidos com o meu”. Conforme passei a habitar o espaço da feminilidade, passei a vivenciar essa e outras linhas de suas falas — como por exemplo a de que “eles” nascem para ser amados, enquanto “nós” nascemos para amá-los. Sair do lugar da homossexualidade masculina para o lugar da transfeminilidade nos obriga a lidar com linguagens de desejo conflitantes. O deslocamento do meu corpo representou também um deslocamento nas minhas relações, num sentido mais íntimo. A diferença podia ser sentida, e eu sabia que estava “pagando” pela transformação que carrego.
Eu falava uma linguagem de desejo homossexual cisgênero. E, transicionando, me recusei a falar a linguagem de desejo dos homens heterossexuais sobre o meu corpo. Essa linguagem trans que ainda estou aprendendo a explorar parece transitar entre glossolalia e silêncio. Isso me força, ainda hoje, a redescobrir meu desejo, como se fosse a primeira vez. Em um texto anterior dessa coluna, explorei duas narrativas culturais que pessoas transfemininas precisam enfrentar ao se colocarem como corpos desejantes e como meu corpo rejeita ambas. Hoje, quero falar mais da complexidade do desejo trans.
Foi com Talia Mae Bettcher que encontrei uma de minhas intuições favoritas sobre as trans/sexualidades. Em seu ensaio “When Selves Have Sex”, sobre a fenomenologia das orientações sexuais de pessoas transgêneras, Bettcher desenvolve uma elegante formulação que ela nomeia de “estruturalismo erótico”. Para isso, ela rejeita a concepção do desejo e da orientação sexual como uma linha unidimensional que vai do eu ao outro. Em seu paradigma, Bettcher apresenta o desejo sexual como um espaço multidimensional complexo, onde representações, fantasias, identidades, realizações e experiências tanto do eu quanto do outro circulam.
Desse modo, entender sua “orientação sexual” não implicaria apenas em descobrir por quem você se atrai, como se se tratasse de um vetor ou um magnetismo — mas também de entender a sua experiência do seu próprio corpo, como sua identidade se realiza no seu desejo, qual é a figura imaginária através da qual você se relaciona com outros corpos. O que você quer ser, se tornar, sentir, a aparência que você quer ter, a identidade que você quer realizar através do sexo é tão importante quanto o outro com quem essas coisas se realizam. Como primeira consequência, isso borra os limites entre “orientação sexual” e “identidade de gênero”, levando a uma compreensão mais total, mais complexa da relação corpo-identidade-sexualidade.
Isso pode explicar toda uma gama de experiências. Desde a preocupação excessiva do mundo cisgênero em realizar através da sexualidade a identidade de homem heterossexual para com outros homens, ou a identidade de boa esposa e companheira para outras mulheres; às diferentes dinâmicas de gênero nas sexualidades gay, lésbica e bissexual; às frequentes e muito comuns mudanças de orientação sexual e desejo que acontecem com pessoas trans ao longo de suas transições.
É certa a intuição de Paul Preciado que para as pessoas trans, os conceitos de orientação sexual se tornam facilmente obsoletos. Porque nossas experiências complexificam, ou pelo menos expõem uma complexidade já existente porém ignorada sobre as relações sexuais. A sexualidade é sim um fenômeno que se dá no corpo. Mas precisamos expandir o conceito de “corpo” para além da fisiologia, da anatomia, da carne. Eu não tomei hormônios nem nunca fiz nenhuma modificação corporal significativa em decorrência da minha transição. Mas meu corpo, para todos os efeitos, não é mais o mesmo. Ele é habitado, apresentado, vestido, exibido ou escondido, excitado ou interdito de modos completamente diferentes. Esse corpo foi recodificado pela transição de gênero. E quando se recodifica um corpo, se recodifica também o desejo. Reconhecer isso me deu um outro caminho de conexão com meu próprio corpo e os seus prazeres.
Acredito que essa seja uma chave importante sobre nossas linguagens da trans/sexualidade. Ao tentar nos adequar às orientações sexuais que se baseiam no pensamento naturalizado acerca da diferença sexual, não é difícil vivenciar uma experiência extremamente disfórica. Especialmente se estivermos nos relacionando com pessoas cisgêneras, cujas linguagens de desejo se baseiam na realização da própria cisgeneridade. Essas pessoas podem não estar prontas ou dispostas a receber uma relação que já não tenha sido prescrita pela coerência sexo-gênero-desejo própria da matriz cisgenênera e heterossexual. Esse choque inicial, pelo menos para mim, mudou significativamente a minha relação com o meu corpo. Inserir-se como corpo trans numa cultura sexual extremamente generificada em termos cisgêneros pode criar uma desconexão cortante da totalidade dos nossos corpos e de nós mesmas. Isso significa uma desconexão da totalidade de nossos desejos, de nossos prazeres, das nossas personalidades e das nossas forças vitais.
Para mim, por exemplo, isso é sobre rejeitar adentrar o espaço das pessoas que me desejam de um modo que não abre espaço para que eu realize minha conexão comigo mesma. Me senti profundamente tocada pelas falas de Hunter Schafer para Jules, em seu episódio especial de euphoria, onde ela fala sobre não mais se sentir “filosoficamente” interessada em homens, em ser o que eles querem, em moldar sua feminilidade segundo os desejos deles. Isso me forçou a rever meu desejo e buscar novas formas de realização de mim mesma em outras figuras transfemininas. Eu precisei aprender a desejar outras como eu antes de saber como quero ser desejada. A atenção à minha sexualidade trans me fez querer mais — me fez querer entregar meu corpo apenas a quem pode recebê-lo em sua criatividade e totalidade, e que me incentive a me tornar cada vez mais eu mesma.
Penso com Audre Lorde, para quem o erótico é uma forma de poder e força mobilizadora do valor pela vida. É difícil posicionar-se de um modo que afirma o valor em sua presença e em seu prazer quando seu corpo é atravessado e mutilado por linguagens de desejo de um mundo hostil à sua existência. Essa privação do erótico trans também nos priva de nossas forças e potências que podemos investir em produzir vida. Por isso, abandonar a busca pela normalização, categorização precisa e pela aceitação cisgênera em prol da criatividade inventiva trans me parece um caminho poderoso. Precisamos reconstruir o erótico trans em nós mesmas.
Um fenômeno interessante, que Judith Butler nomeou de Queer Crossings (e que Paul Preciado viria a renomear de contrassexualidade) me parece um caminho interessante. Os queer crossings [algo como “cruzamentos queer”] seriam sobreposições, trocas, contatos entre culturas sexuais e de gênero aparentemente não relacionadas. Como, a cultura Leatherdyke Boys — que inclui dinâmicas BDSM onde mulheres cis lésbicas e pessoas não-binárias transmasculinas exploram linguagens de desejo normalmente atribuídas à homossexualidade cismasculina, como as categorias de “daddies”, “twinks”, “leatherboys”, “ativo [penetrador]/passivo [penetrado]”. Essas culturas sexuais demonstram o potencial do corpo para ser mais do que é, para transformar-se com e através do sexo, e para a multiplicação de inventividades, criações e descobertas. São numerosos os exemplos entre pessoas cisgêneras na comunidade Gay e Lésbica onde suas culturas sexuais “vazaram”, misturaram-se, sofreram mutações, cruzamentos queer que se tornaram expressões de sexualidades trans.
Gosto de pensar sobre o darwinismo bicha de Paco Vidarte. A ideia de que as bichas são essencialmente uma força criativa, que fazemos com nossos corpos coisas que a imaginação do mundo cisheterossexual não é capaz de compreender, e que a essência da queeridade talvez seja a criatividade multiplicativa. Estamos evoluindo, como os primeiros animais, que se tornaram — quase sem perceber — uma multidão de coisas completamente diferentes, diversas, coloridas, plumadas ou peludas, enormes, pequenas, ágeis e destemidas, ou lentas e preguiçosas. Esse pensamento quase ecossexual recupera as minhas potências eróticas. Através disso, eu sou capaz de buscar meu desejo através do que eu quero que meu corpo seja, em vez de buscar um ajustamento disfórico às linguagens do desejo alheias. Minha sexualidade passou a ser um convite para a criatividade. E eu passei a encarar o desejo como uma árvore da vida do darwinismo-bicha: uma cartografia traçada no corpo da potência da própria vida para trans/formar-se.
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Assinada por angie barbosa, essa coluna toma força e inspiração de movimentos anarquistas, feministas e trans/travestis. Essa coluna é um movimento. Somando-se a uma tradição de divulgação política anarquista, ela busca abrir espaço para que a radicalidade se mova expropriando e coletivizando teoria; abrindo caminhos para a educação política radical trans/travesti. Pois não resistiremos à violência sem antes entender seus movimentos, não nos radicalizaremos sem antes enxergar alternativas, não reconstruiremos o mundo sem antes abrir as portas de nossas imaginações para fabular em rebeldia contra o mundo cisgênero. Somente então podemos parar de pedir inclusão para exigir abolição. Revoltar-nos contra tudo que nos for imposto, expropriar tudo que nos for possível, coletivizar tudo que nos for garantido, formar redes em todos os lugares que nos forem acessíveis e cuidar de todas que as nossas potências alcancem, para garantir hoje — com toda dor e prazer do processo — as forças que construirão nosso amanhã!
angie barbosa é travesti, artista visual, integrante da coletiva wonder de teatro. Se dedica de modo autônomo aos estudos feministas e aos estudos queer/trans e busca realizar iniciativas de educação popular sobre gênero e sexualidade para pessoas trans.