Trecho do conto “Ext/int” de Danilo Brandão
Danilo Brandão nasceu em São Paulo, em 1996. Estreou na ficção com o livro de contos Tempos ainda sem nome (Editora Urutau, 2022). Até a última gota (Editora Mondru, 2023) é o seu segundo livro. Já publicou contos e reportagens em diversas revistas, sites e jornais especializados em literatura. Entre eles, Revista Piauí, Revista Gueto, Revista Lavoura, Jornal Relevo, Ruido Manifesto, etc. É formado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina e faz mestrado em Literatura pela Universidade Federal de São Paulo. Atualmente vive em São Paulo e trabalha como redator e roteirista.
O trecho abaixo é o inicio do conto EXT/INT, que compõe o livro Até a última gota.
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Trecho do conto EXT/INT
INT. RAIO X – NOITE
Tenho o que se chama de fígado gordo. Ou, como os médicos anotam nos prontuários, esteatose hepática. Mas isso não dá pra notar sem um hepatograma completo. É o resultado de anos de pratos feitos com muito óleo e pimenta, excesso de refrigerante no horário do almoço e barras de chocolate KitKat como sobremesa. Estou com quarenta e um anos e não pretendo lutar contra isso agora. Minha frequência cardíaca não passa dos cem por minuto há quatro anos: última vez que fiz sexo. Tenho um metro e oitenta e cem quilos. Apesar do ligeiro excesso de peso, me apresento com um corpo socialmente aceito quando estou de camiseta. Na verdade, minha relação com a vida é essa: não consigo me mover em direção ao subjetivo. Por isso, busco a opção que me parece mais apetitosa do cardápio em todas as refeições. Sem exceção. Não conseguindo, dessa forma, me livrar da gordura que entope minhas vias biliares. Sempre uso camisa larga, jeans e tênis. Sinto pena de todos os outros homens da cidade. Como se a vida já não fosse triste o bastante, ainda dão a maior importância para si mesmos, tornando tudo mais complicado. Prefiro me concentrar no roteiro das cenas curtas.
Minha mãe morreu no dia 15 de agosto de 2019.
EXT. UM CAÇADOR – DIA
Aproveito a quinta-feira grátis no IMS para visitar a exposição com Gio. Estaciono numa rua paralela da Paulista e me apresso para atravessar o laranja do semáforo. Gio fica pra trás e aproveita para fechar o guarda-chuva. Subimos o primeiro lance de escadas com ela me falando sobre o estado de saúde da mãe doente. Me aborreço porque já conto o décimo quinto degrau. Pego o catálogo da exposição com o nome do fotógrafo em destaque: Daido Moriyama. Primeira grande retrospectiva latino-americana de um dos maiores fotógrafos japoneses vivos. Daido Moriyama (1938) iniciou a carreira no Japão do pós-guerra e se tornou o ícone pop e mais influente da fotografia japonesa. Inspirado por artistas como Andy Warhol, William Klein e Jack Kerouac, Moriyama revolucionou a forma de olhar o mundo com suas imagens densas e granuladas. Gio interrompe minha leitura para me mostrar uma foto preto e branco de um sorriso. No lábio superior, uma pinta. Os dentes enfileirados. Ficamos em silêncio por quinze segundos. Ela volta a me falar sobre o estado dos rins de sua mãe. Ela quer ser mãe jovem. Não quer repetir os erros da sua progenitora. Vai diminuir o refrigerante. Cortar o carboidrato. Não quer mais fumar depois do sexo. Sente falta de algo que nunca teve na infância. No fundo, sente pena da mãe. Fico mal humorado e rosno conclusões óbvias. Repito a cartilha da Organização Mundial da Saúde e os conselhos de um jovem iniciante na psicanálise. A fotografia é toda fragmentada, reduzida às partes e sem foco, como se um fundista de cem metros rasos levasse uma câmera em seu tórax ansioso. Cortes. Rostos, embalagens de produtos, anúncios, pisos de hotéis. Bundas, sorrisos, pelos pubianos. Analgésicos, outdoors e esquinas. Cidades. Vidas. Um casal assiste stories no volume máximo ao nosso lado. Reclamo e eles pedem desculpas. Dão as costas e voltam a sorrir para o celular. O sapato que meu irmão trouxe para mim de sua viagem abriu no dedinho esquerdo. Roça a cada movimento e já retirou a camada superficial da pele faz uns metros. Gio lembra de algo: sua mãe sempre foi péssima na cozinha e isso a atrapalhou no seu desenvolvimento alimentar. Minha cabeça gira e perde o foco como numa das fotografias de Daido. Meus olhos estão vermelhos e volta a chover lá fora. Comento que vai ser preciso esperarmos alguns minutos para caminharmos até o restaurante. Olho para as pessoas na rua e Gio nunca comeu frutas quando era pequena. Meu telefone toca. Tem algo de errado na minha vida. Minha mãe havia morrido.