Trecho do romance “Através de Nós” de Sabrina Gottschlisch
Sabrina Gottschlisch, paulista, é feminista, historiadora, professora, mãe, participante de Clubes de Leitura e Escrita. Em 2020 lançou seu primeiro e-book, Mãe de Atleta. No mesmo ano, teve um texto publicado na coletânea Cartas de uma Pandemia. Em 2021 teve textos selecionados no prêmio Off Flip nas categorias contos e crônicas, entre outras antologias, e em 2022 lançou seu romance juvenil Que Sorte a Minha na Bienal de São Paulo. Já publicou contos em diversas revistas literárias. Em 2021 foi contemplada pelo ProAc/SP, através do qual lançou o romance Através de Nós em 2023 pela Editora Paraquedas. Instagram: @sabrina_gottschlisch
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Trecho do livro Através de Nós de Sabrina Gottschlisch
Começar
Entro no avião na madrugada gelada. Procuro meu assento enquanto penso que é a primeira vez que volto ao Brasil desde que vim morar na Austrália. Queria que fosse por outra razão, mas nenhum outro motivo me faria sair às pressas daqui, logo após minha formatura.
Sento no corredor. Há uma mulher já ressonando na poltrona da janela. Aparentemente não haverá ninguém na poltrona do meio, já que fui a última a embarcar. Esparramo minhas coisas na cadeira vazia. Penso na minha mãe, em como era organizada. Ela nunca seria a última a entrar em um avião. Nem espalharia seus pertences assim. Sempre seguia um roteiro, fosse em viagens ou na vida.
A família dela era de mulheres. Tantas mulheres, tão diferentes, com suas qualidades e defeitos, parte de quem minha mãe se tornou. Talvez eu aproveite a viagem para escrever uma história que me ajude a voltar a respirar. Uma história que não tem começo nem fim, que simplesmente segue adiante, como todas nós seguimos. Grande parte dessa trama, foi minha mãe que me contou, ou deixou escrita em cartas e cadernos que fui encontrando ao longo do tempo. Para ela, escrever era uma estratégia de sobrevivência.
Preciso me esforçar para lembrar os menores detalhes, não deixar que nada tenha sido em vão. Não seria apenas um amontoado de fatos; seria eu, o que fez de mim o que sou. Com o que me lembro, o que outras pessoas se lembraram e me contaram. Seria uma história inspirada em nós.
Nossa matriarca partiu e quero costurar os fios dessa memória.
“Nada mais certo que a morte; nada mais incerto que a hora da morte”, costumava dizer minha bisavó Lúcia, tão sábia e endurecida pela vida. Devia ter razão. Sobreviveu à gripe espanhola, a duas guerras mundiais, e, aos 103 anos, a Covid-19 a levou. A morte vem sem dar aviso.
Lembro de poucas pessoas dessa família, mas minha mãe vivia contando histórias que tornavam presentes todas essas mulheres por quem ela transbordava de amor. Talvez as filhas ou sobrinhas que eu tiver um dia queiram saber também dessas nossas origens.
Me esforço para lembrar, mas as imagens me escapam, fugidias, como uma abelha que nos incomoda com seu ruído, e nunca conseguimos deter.