Trecho do romance “Eu me amo (eu acho)” de Sabrina Guzzon
Sabrina Guzzon (@sabrinaguzzon) nasceu em Porto Alegre/RS, morou em Cambridge enquanto estudava no Reino Unido e atualmente vive em São Paulo, capital, onde passou mais da metade de sua vida. Publicitária e escritora, Eu me amo (eu acho) (Editora Paraquedas) é seu quarto livro. Antes dele, publicou duas obras independentes (Louco é quem não ama e A terapeuta virtual) e Emiliano, pela Editora Giostri. Considera seus dois filhos, Maria Flor e Antônio, suas mais incríveis criações.
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Trecho do romance Eu me amo (eu acho) de Sabrina Guzzon
Capítulo 2
Enquanto escrevo, eu também escuto músicas. E já te imagino lendo e seguindo minha trilha sonora, sabe? Assim, nossa conversa fica mais íntima, interativa e menos séria. Porque para mim é sobre isso. Colocar histórias no papel é ter a capacidade de encará-las e sorrir para o passado. É abraçar nossa versão anterior com amor e nos fazer aquele carinho que, talvez, tenha nos faltado.
Engana-se você se acha que esse foi o único cantor cheio de charme e talento pelo qual me apaixonei. Não, não. Me apaixonei por vários. Alguns me davam bola e outros nem me viam perdida no meio da plateia. O mais engraçado é que não foram poucas as vezes em que, no meio da multidão, achava que o olhar do vocalista era direcionado para mim. Sim. Para mim. Ele estava cantando aquelas letras só para mim. Eu seria a escolhida. Eu era especial.
Quando conheci o primeiro músico realmente muito famoso, eu, que sempre fui uma negação para me lembrar das coisas, não o reconheci. Mesmo vendo-o chegar com toda banda no hotel, onde eu aguardava com os fãs que iriam acompanhá-los para o show. Era um trabalho importante. E eu, estagiária na época, tinha recebido essa tarefa. Tinha dezenove anos. Muito nova e já cheia de responsabilidade. Até porque, na minha vida, tanto quanto sexo, existem trabalho e esforço. Trabalho desde os dezesseis anos. Faço sexo desde os dezoito.
Estávamos no hotel, eu e mais uns seis desconhecidos esperando a banda. Aguardamos um tanto. Mesmo depois de chegarem, continuamos esperando. Check-in, malas, instrumentos, todos prontos. Entramos no ônibus rumo à praia, o show seria lá. Me sentei no último banco, na janela. Turma do fundão. Logo ele veio se sentar ao meu lado e conversamos durante o trajeto. Ele era bonito, atencioso, não se parecia em nada com um artista egocêntrico e blasé. De fato, não era o perfil pavão, esnobe e distante, como eu achava que eram todos os artistas. Imaginava, é claro, porque não conhecia artistas. Então, nem podia imaginar o óbvio: todos são gente como a gente. Com muitos problemas e medos. Com muita vida acontecendo por trás dos holofotes.
Ele era um cara comum, com um sotaque lindo. Óculos e um jeito nerd irresistível. Sim, sou dessas que adora pessoas inteligentes. Ele tinha muitas histórias para contar, todas na ponta da língua. Muito engraçado. Logo me interessei por ele e comecei a mentir sobre minha vida. Eu era de família de classe média, me casei cedo pensando em sair de casa e ter minha independência. Quem acha que será independente se casando? Pois é. Eu. Me casei aos dezenove anos, mas disse para ele que só tinha namorado. Nada me impediria de chegar mais perto daquele rapaz encantador.
Eu não sabia, mas ele também estava me enrolando. Durante a viagem, não me disse que fazia parte da banda. E me fez acreditar que ele era do staff. Quando subiu ao palco, caí de quatro.
Finalmente, os olhares que vinham de um cara da banda me encontravam lá embaixo. Eram para mim. A energia de um show é incrível e eu sentia tudo aquilo intensamente. Jovem. Linda. Envergonhada. Fascinada.
Logo viramos bons amigos ou um pouco mais do que isso. Passei muitos anos escutando algumas músicas e me lembrando dele. Só porque ele cantava para mim no carro, nos nossos encontros. Achei romântico e impossível de esquecer.
Nesse mesmo dia, ele também veio com frases de amor inigualáveis: me diz o que você quer de mim? Quer que eu seja seu namorado? Seu amigo? Seu marido? Seu amante? Me diz o que quer de mim.
Vou dar uma chance para você adivinhar o que respondi. Pensa um pouco. Uma menina cheia de traumas, cheia de medos. O que responderia?
Hoje, sem dúvida, teria uma resposta melhor. Na época, só consegui dizer: não sei. Pois é, minha gente, quando você não sabe o que quer, acaba ficando sem nada. E assim foi.
Depois daquela viagem de ônibus, acompanhei diversos shows. Eu era figurinha carimbada nos bastidores. Mais uma, sei bem. Mas eu estava sempre por lá. Sexo na areia da praia, em diferentes hotéis, em diferentes lugares do Brasil. Jantares românticos, festas, cafés da manhã. Reuniões de trabalho. Sempre que tinha uma brechinha na agenda, lá estávamos nós. Fizemos um tanto de loucuras por aí durante mais de vinte anos de amizade.
E de novo um vai-não-vai na minha vida. Um eterno namoro ou amizade. Na verdade, mais um amor daqueles impossíveis. Que nunca, de fato, seria um amor da vida. Apenas trouxe esperança e desejo de sonhar. Mais um amor também inventado. Como você pode ver, sou bem boa na arte de me iludir e de ficar nesse lugar.
Talvez isso tenha acontecido em função do sexo. Nunca conseguimos estabelecer uma verdadeira química na cama. Combinamos em muitos lugares. Mas não aí. Sempre um pouco desajustados, desequilibrados, tortos. A mão sempre no lugar errado. O beijo não preenchia. Muito mais desejo do que satisfação sexual.
Não que eu ache que sexo seja tudo. Mas é importante ter química. Amor tem um pouco de cada coisa. A gente não tinha. E quando falta esse lado, a relação acaba se tornando uma relação de irmãos. Pessoas que se amam e se respeitam, mas que não irão muito além disso.
Dizem que depois de um tempo, quando velhinhos, é normal as relações se transformarem. Mas eu ainda me iludo, me imagino velhinha ao lado de alguém com tesão por mim. Com quem divido histórias engraçadas, amorosas e sexuais. Será que existe esse tipo de amor por aí? Você conhece algum casal que se ama loucamente e que consegue manter o desejo através dos anos?
O grande desafio também é esse. Além de encontrar alguém que você ame loucamente, é preciso tentar loucamente manter esse amor vivo e estimular o cérebro constantemente. Sim. O cérebro. Acho que muitos amores acabam em função de pensamentos errados, falas tortas ou até mesmo coisas não ditas.
O cérebro é muito importante para uma relação e para o sexo. Eu gosto de gente inteligente.
O cérebro me atrai mais do que os corpos, estimula minha libido. Mas o corpo também precisa contribuir na química. Não tem muita explicação, não sei o que faz essa química. Para mim, é um grande mistério.
Nunca me atraí fisicamente por um padrão específico. Era mais inteligência e química, com os mais diferentes tipos físicos. Eu gosto de conexão de corpo e de alma.
Não vou mentir. Senti conexão algumas vezes, mas não consegui manter. Foi mais culpa minha do que do outro. Não culpo ninguém além de mim. A questão é que, me amando pouco, também não permitia que me amassem. Eu não conseguia amar o outro de uma forma assim tão aberta, serena e completa.
Engraçado que minha mãe sempre me disse isso: “Você precisa se amar”. Repetia isso muito durante minha adolescência. Eu nem entendia o que ela queria dizer. Por que me dava aquele conselho? Ela estava certa. Eu precisava mesmo. Mas o caminho em busca da minha autoestima foi longo. Nesse caminho, fui tropeçando em diversas histórias amorosas. Mal sabia eu: sempre fadadas a não darem certo.