Trecho do romance “Por um momento, um dia, uma vida ou sei lá o quê…” de Hugo Bessa
Hugo Bessa (@hugobessaescritor) nasceu em Volta Redonda (RJ), mas foi em Cruzeiro (SP), onde cresceu e vive hoje, que descobriu sua paixão pelas histórias. É jornalista, especialista em Língua Portuguesa, e atua na produção de conteúdo para comunicação empresarial. Como escritor, já publicou os livros Em Um Lugar Melhor e Todas as Cores da Vida e recentemente lançou Por um momento, um dia, uma vida ou sei lá o quê… pela editora Penalux.
***
Trecho do romance Por um momento, um dia, uma vida ou sei lá o quê… de Hugo Bessa
A chaleira começou a apitar fino, e Joana ainda demorou alguns segundos para se afastar de seus pensamentos e voltar à realidade. Respirou fundo e foi na direção do fogão. Ansiava poder desligar era seu cérebro, afastar-se dos devaneios inapropriados para a sua idade. Não achava certo uma mulher de cinquenta anos ficar sonhando com romances impossíveis e beijos calorosos com desconhecidos. Mas, justificava para si mesma, era seu único prazer, imaginar-se nos cenários das novelas a que assistia, viver histórias impossíveis, fugir da realidade.
Enquanto divagava, escutou o marido gritando da sala para avisar que a água estava fervendo. Será que ele a considerava surda? Não poderia condená-lo… Pronto. Silêncio. Detestava o silêncio. Ele fazia gritar tanta coisa dentro dela. Era uma fresta que se abrira para se lembrar de Júlia. Sua melhor filha. Por que justo ela? E para não ficar se fazendo uma pergunta para a qual nunca teria resposta, preferia sonhar. Imaginava-se em Paraty com o empresário sedutor da novela das nove. Ele a levava para um passeio de barco e os dois se perdiam nas ilhas da região. Sonhava com o borracheiro da novela das sete. Ele a socorria no meio de uma estrada deserta, e eles faziam amor ali mesmo.
Não, não era certo imaginar essas coisas com seu marido quase ao lado, na sala, lendo inocentemente. Como lê esse homem, e que raiva ela tem disso! Ele coloca tantas palavras para dentro de si, e não solta nenhuma delas. É um homem calado. Carinhoso, honesto, trabalhador, atualmente aposentado, mas calado. Nunca foram de muita conversa. Eram companheiros no silêncio. E agora também na dor.
Colocou a água quente em uma vasilha de vidro e esfregou para tirar os últimos resquícios do angu feito no almoço. Sempre o deixava passar do ponto para depois comer a casquinha crocante que se formava no fundo. Esfregava a vasilha, e sua cabeça começou a latejar. Deveria ter desligado logo a chaleira, o barulho intermitente irritou seu cérebro.
Mal terminou o almoço e teria que pensar na refeição do dia seguinte. Não aguentava mais aquela rotina. Detestava cozinhar. Aprendeu apenas obrigada pela mãe, que julgava ser fundamental para arrumar um marido. Muitas vezes, cozinhou com raiva. Se os sentimentos se transformassem em tempero, todos na sua casa teriam comido coisas amargas como fel.