Trecho do romance “Proibido mirar afuera” de André Arieta
Músico, cineasta e cientista onírico, André Arieta também é professor de cinema e calouro na fábrica de palavras e papel. Gosta de Syd Barret e Bete Carvalho e se desloca no espaço/tempo com os filmes de Antonioni. Se tu chegou até aqui, te aprochega!
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Trecho do romance Livro Proibido mirar Afuera de André Arieta
Madeira grossa e rara. É telegrafo com suas repetições, um telegrafo tipo naked lunch.
Em cima de nossas cabeças a hegemonia letárgica do conhecimento
Metade Mostardas
Chuí
Alexandria
Expurgo da canalha proparoxítona
Substância indissolúvel transmutando as primeiras ideias em carvão
moderno
Bíblia asteca no sótão da constelação desnutrida
Quase ninguém
Matéria
Último segredo das nozes
Chocolatão[1], não, não é o chocolatão, é o prédio medíocre da comarca de Porto Alegre, o Fórum, onde pessoas são julgadas numa sala pequena do terceiro andar: divisórias brancas, portas brancas. No lado de fora, um grande espaço marrom com cadeiras e bancos marrons, ali as partes esperam ser chamadas, não se olham direito, mal se cumprimentam, existe um constrangimento, os advogados não se envolvem e ficam por ali. O Velho já foi chamado para a audiência do processo em que é réu, a parte reclamante é a ordem pública, uma promotora desinibida com seios reais vai acusá-lo. O advogado do Velho é o Cláudio Calcanhoto, que agora sobe esbaforido as rampas do fórum, rumo ao sétimo andar, os elevadores, além das longas filas, fazem muita baldeação, percorrem labirintos horizontais. O Velho não passa pelos constrangimentos da grande sala marrom, que eu nem sei se é marrom. Ele se diverte com o circo, que não tem trapezistas nem está flutuando sobre o oceano, mas lhe traz notícias de si mesmo, sua memória perdida, naquele instante da coisa contada, se reconstrói, mas acaba o assunto e tudo vai embora de novo. As mesmas pessoas são ouvidas repetidamente, o Estado, representado pela promotora saliente, está com a firme disposição de condenar, o Velho não se importa, não é um fingimento para as câmeras, uma impostura de herói sem medo, é que ele precisa ir pra outro lugar, qualquer um, prisão de segurança máxima, o único prisioneiro, quanto tempo para si mesmo que ele nunca teve! Cláudio chega na audiência provocando sons breves, de frequências agudas características. Agora a mesa retangular em frente à Juíza está completa, de um lado a famosa promotora, e do outro, o Velho e seu advogado; na cabeceira um estrado escuro e mais alto forma um T, palco elisabetano[2], a Juíza no balcão suspende o movimento, o escrivão abre as cortinas. Como nas investigações, eles estão começando tudo de novo, na verdade todos parecem meio confusos quanto a ordem dos trâmites no encaminhamento do processo, mas se deixam ficar naquela sala com ar-condicionado.
As testemunhas estão aguardando, mas neste novo começo, por hora, não são necessárias.
Juíza:
O senhor sabe por que está aqui, diante deste tribunal como réu?
Velho:
-Cagaço
Juíza:
– Cagaço não leva ninguém pra cadeia.
O Velho se levanta já indo embora:
Posso ir então?
Oba! filme de julgamento!
Cláudio vai começar a falar, abre a boca, mas não respira, faz uma pausa, decide:
– Pensei em chamar um médico para confirmar o passamento do Velho, lembrei da inimputabilidade dos mortos, e este fato anularia o processo.
Juíza:
– Vamos chamar um obstetra, enquanto isso prossigo com meu interrogatório antes de passar a palavra á eminente promotora.
Juíza:
– Descreve pra nós a tua deformidade secreta
Velho:
– Não é cartilagem, é uma curva, depressão óssea, tem um monte de outros mortos, não estou sozinho.
Cláudio:
– Tá todo mundo morto, oba! lembra! o Silvio Brito cantava na buzina do Chacrinha.
Velho admirado:
– Percebi, então eu estou morto!
Juíza:
-Calma que o médico já vem.
Juíza:
-O Sílvio Brito é tua testemunha?
Cláudio
-Sim
Juíza:
– Bom, teu cliente está sendo julgado por se envenenar lentamente.
Cláudio:
– Oxigênio?
Juíza:
– Ferrugem.
Velho:
– Eu fui vítima de uma substância mágica.
A promotora se levanta e pede a palavra:
– Gostaria de chamar uma nova testemunha.
Cláudio protesta:
– Protesto.
A Juíza está curiosa e permite:
– Permito.
Leonor, o dono do circo entra no recinto. Bunda grande, ombros estreitos, é um sujeito despachado, antes de sentar já vai falando:
-Velho, confessa, tu judiô dessa carcaça!
Promotora:
– Leonor, quem o Velho matou?
Leonor:
– O domador do circo que amestrava o Velho.
Promotora:
– Pra que o Velho era amestrado?
Leonor:
– Pra chegar atrasado.
Promotora:
– Como foi o assassinato?
Leonor:
– Quando o domador botou a cabeça dentro da boca do Velho, ele fechou as mandíbulas arrancando um pedaço do crânio calvo com recheio de cérebro.
O obstetra chega, ele fez o parto do Velho e vai estar no funeral do Gil daqui a pouco. Ele se apresenta:
-Oi Juíza, eu sou o obstetra.
Juíza:
– O senhor pode verificar se o réu está vivo, por favor.
O obstetra se aproxima do Velho e verifica a existência. A Juíza pergunta:
– Morto?
Obstetra:
– É prematuro afirmar qualquer coisa neste momento.
Velho:
– A senhora pode formular com mais nitidez a acusação contra á minha pessoa?
Juíza:
– Suicídio postergado.
Velho:
– O meu pai foi entupindo as artérias lentamente.
Juíza:
– Um movimento no estômago, que sobe do centro do peito pro lado direito do coração, encima, e na cabeça uma pressão circular, do crânio ao queixo e vice-versa.
Velho:
– Adiantou pra alguma coisa?
Juíza:
-Uma lista enorme de palavras, coisas e ações.
Juíza:
– ta ta tan tan ta tataratarata
A promotora acusa o velho de cuspir o bagaço da Bergamota. Ele assume seu erro e lembra de sua avó materna, a ser citada em pormenores adiante, Ele realmente, inexplicavelmente, talvez por algum hábito (adquirido? herdado? natureza ou cultura? Umwelt[3]), mastiga o gomo até tirar todo líquido, e logo após cospe envergonhado, sentindo culpa.
O advogado interrompe:
– E aquela noite de chuva no fliperama subterrâneo?
Velho:
– Primeira vez que os Restano saíram à noite.
Promotora:
– Onde está o mecânico Lambruskini?
Velho:
Por que estou sendo julgado?
Juíza:
– Silêncio presumido.
Velho:
– Sou perseguido por minhas posições políticas. recebi uma intimação do estado na condição de réu, só lembro de uma goleira pintada na parede da garagem, na rua de trás.
Juíza:
– Não sei o que julgar, todos me tratam como se soubessem o que vai acontecer.
Cláudio Calcanhoto:
-Quando vamos começar a chamar as novas testemunhas?
A juíza chama o coelho e a tartaruga, ela está impassível, ele desencantado, de repente percebeu a verdadeira condição, lembra de seu primo carregando a pedra montanha acima. O réptil fala primeiro:
– Nunca fui santa.
O coelho interrompe:
– Eu dormi.
As pequenas sabotagens se acumulam interrompendo a vida com discrição, aquelas grandes catástrofes planejadas do Velho contra si mesmo, agora aparecem como excepcionalidades que reverberam num determinado momento, e seu estrondo é curativo, uma revolta das leis naturais contra a tua imobilidade.
Tartaruga:
– Não brinco mais.
Notas
[1] Prédio público marrom em Porto Alegre, daí o apelido
[2] formato de palco de teatro muito comum na Inglaterra de 1558 a 1603, durante o reinado da rainha Elizabeth I, ficou bastante conhecido pelas encenações de peças de Shakespeare.
[3] Teoria criada por Jacob Von Uexkull com colaboração de Thomas A. Sebeok, a partir do significado da palavra em alemão: meio ambiente, mas que amplia bastante seu sentido, pois parte de um processo comunicativo entre os seres vivos que compartilham o mesmo ambiente. Cada componente funcional de um Umwelt tem um significado e por isso representa o organismo modelo do mundo, incluindo todos os seus aspectos simbólicos para qualquer organismo em particular.